Calle Soriano

Papéis molhados

Posted in Sem categoria by iurimuller on 27 de março de 2014
foto: santiago filipuzzi

foto: santiago filipuzzi

Está lloviendo en Buenos Aires

Eu trabalho num negócio pouco explorado aqui na cidade. Fica na Rua Estados Unidos, quase esquina com Lima. Entre Constitución, San Telmo e Balvanera, a cem metros da Avenida 9 de Julio. Discordo de que estejamos longe dos turistas. Não é um ponto ruim, a prova disso é que abri a loja há mais de dez anos, talvez a única que nasceu naqueles dias de pedradas e panelaços. E não é preciso que o balcão esteja rodeado por turistas, que os gringos parem de dois em dois minutos na frente da minha vitrine. Vender guarda-chuvas não é como vender alfajores ou discos de tango. O que os traz aqui é a necessidade, a impaciência da chuva que por vezes parece jamais abandonar Buenos Aires.

Recentemente, houve um agosto em que a chuva foi tão forte, e durou por tantos dias, que esquecemos as anunciações da primavera. Mas, entre tantos aguaceiros, houve um estranho domingo de sol. Domingo que contrariou os homens do tempo, a sabedoria dos padeiros. Os carros que vinham desde La Plata pareciam atordoados na metade da autopista. Aquela luz há tanto escondida quase cegava os que trafegavam pela cidade ainda molhada. Naquele dia, foram poucos os que saíram com o guarda-chuva em mãos. A claridade e o céu azul eram mais reais do que o noticiário inteiro.

Lembro esse domingo porque houve algo naquele sol que me fez pensar na minha loja, nos meus guarda-chuvas. Estava em San Telmo, como faço quase que diariamente, após contar os pesos do dia e chavear o portão. Passo, inevitavelmente, pela Rua Bolívar. Não sei se pela força do cotidiano ou por casualidade geográfica, mas com o tempo este trajeto deu-me alguns amigos pelo caminho. Com um deles, travo a amizade mais estranha dos meus cinquenta anos. Nossas frases emperram, e emperraram sempre. Pouco sei sobre a vida dele, se tem filhos, se nasceu na Capital Federal, se leu boa parte dos livros que vende. Desde que eu passo por ali, vejo-o sentado na mesma cadeira, ao lado das estantes e afogado na fumaça dos cigarros que se repetem enquanto a tarde perdura.

Apenas sei que se se chama Gonzalo, que é livreiro e que há muitos anos mantém o sebo na Rua Bolívar. E que é um bom sujeito, daqueles que nos conquistam com uma palavra certa e muito de silêncio. Durante a semana, a pausa na caminhada é rápida; deixo meu cumprimento e, por vezes, um comentário qualquer sobre o governo, as greves, a política. E então sigo o meu caminho. Nos finais de semana, fico por mais tempo, nem que seja para ouvir a chuva, o bandoneón triste que transborda no ambiente e as frases mínimas, justas, de Gonzalo. Foi assim até a véspera do domingo de sol, em que ele, por raivoso e emburrado, não deve ter vendido sequer um exemplar comemorativo da revista El Gráfico.

Quando cheguei, o cenário já tinha aquele ar que têm as coisas quando estão a ponto de explodir. Ele havia colocado música brasileira na vitrola, truque grosseiro para fisgar os turistas das cercanias. Muitos entraram, talvez pelo som, ou pela convidativa vitrine do lugar. Nenhum deles se esforçou a ponto de tentar um buenas tardes em espanhol, mas remexeram nas prateleiras. Eram ingênuos, qualquer pôster mofado de Gardel já servia para levantar suspiros. Apontavam o dedo para algum Macedonio Fernández, e creio que um deles se interessou por uma primeira edição de Roberto  Arlt.  Não  compraram  nada,  evidentemente.  Ali estavam para  escutar  um  fiozinho  do  Rio  de  Janeiro  e  satisfazer  a curiosidade que a figura gorda de Gonzalo suscitava.

Gonzalo desligou a vitrola quando o sétimo turista saiu. Havia amaldiçoado o sol alguns minutos antes; sentia saudade, imagino, do sábado anterior, repleto de goteiras, vento cortante e com o céu, como dizia a previsão do tempo, desmejorando sem parar. Não eram cinco da tarde quando avisou aos clientes restantes que não haveria nada mais. Que voltassem na segunda-feira, se quisessem. Quanto a mim, fui incluído no despejo. Gonzalo disse que precisava ficar sozinho, mas que apareceria na minha loja durante a semana. Compraria um guarda-chuva novo, de cabo de madeira, tão logo o sol  se  escondesse.  E  falou  qualquer  coisa  sobre  o desconhecimento humano em relação à poesia molhada. Como amigos,   livreiros   podem   ser   uma   companhia   silenciosa   e inconstante; como clientes, entretanto, ainda guardam rompantes de consumo enlouquecido.

Tempos depois, Gonzalo apareceu na Rua Estados Unidos. Havia voltado a chover. Observou os modelos expostos no mostrador antes de ultrapassar a porta. Naquela hora do dia a loja fica quase desabitada, ainda que, ao contrário dos livreiros, os vendedores de guarda-chuvas não impedimos a passagem de cliente algum. Gonzalo disse que queria o paraguas da promoção, o de trinta pesos. Mas eu sabia que diria mais. Nos minutos em que estávamos apenas na rota sonora dos pingos que estalavam no teto, eu esperava algum comentário sobre o último domingo. Ele tirou os pesos da carteira e por fim abriu a boca. Para dizer que, ao contrário do que parecia, os livreiros precisavam mais das chuvaradas do que os vendedores de guarda-chuva.

Não o questionei sobre a frase, mas tampouco entreguei o pacote, que aguardava fechado sobre o balcão. Gonzalo seguiu. Disse que dependia da chuva porque a poesia precisa da água. Não das tempestades ou inundações, mas ao menos de uma garoa que persiste por uma tarde inteira, ou de uma rua alagada que atrapalha a caminhada da manhã. Disse que poeta algum pôde escrever sem se molhar um pouco. Que Roberto Bolaño, fodido e doente na Espanha, não escreveu “esperas que desapareça a angústia/  enquanto  chove  sobre  a  estrada estranha/  em  que  te encontras” para as gotas que caíam sobre um camping descoberto, mas para a água que inundou a sua vida inteira. E quando parecia que falaria mais, que me  mostraria algo do que lia e pensava, Gonzalo apanhou o guarda-chuva, acenou um tímido chau e atravessou a rua em direção a Montserrat.

No dia seguinte, fui a Constitución e subi no trem que vai a La Plata. Eu viajava apenas para me encontrar com um distribuidor de guarda-chuvas automáticos, a solução encontrada por dois de cada três porteños que se protegem da chuva. No trem, vi a movimentação de sempre: vendedores de sanduíches, de livros infantis, de rádios movidos à pilha, de ingressos falsos para a próxima partida do Estudiantes; vi intérpretes improvisados que, antes e depois da curta canção, discursavam sobre as dificuldades em que viviam na Província de Buenos Aires, às vezes nas ruas, sem  qualquer  abrigo.  Ao  meu  lado,  no  entanto,  havia  um  tipo incomum; ainda que, a julgar pelas vestimentas, tivesse tão pouco dinheiro como todos nós.

Ele estava quase que alheio aos ruídos internos e ao freio da locomotiva nas estações de Quilmes e Plátanos. Deveria ter vinte anos, pouco mais. O rosto permaneceu a viagem inteira colado à janela, desviando os olhos de tempos em tempos para o livro que levava em mãos. Um livro de Mario Benedetti. Do escritor uruguaio, eu sabia pouco. Lembrava a novela em que um senhor, o personagem central, se apaixonava por uma mulher muito mais jovem que ele. Gonzalo havia comentado uma vez sobre essa história. Mas o livro que o rapaz tinha em mãos era de poesia, algo como uma antologia poética. Um livro de bolso, desses que estão à venda nas estações de trem, embora seja raro encontrar um leitor nos vagões que viajam para o sul.

Pude ler apenas um poema, não sei se completo ou se os versos continuavam na página seguinte. Lia o livro que descansava entre o rapaz e a janela, mas era como se ouvisse Gonzalo naquele último encontro. Dizia assim: “com rios, com sangue, com chuva, ou orvalho/ com vinho, com neve, com pranto/ os poemas costumam ser papel molhado”. Em La Plata, permaneci somente por pouco tempo. Não é simples para um vendedor de guarda-chuvas ser atingido assim, de pronto, pela poesia. Ainda mais quando sente que, enquanto vende estes automáticos, ou mesmo os mais clássicos, que ainda levam cabos de madeira, o que na verdade faz é impedir que a chuva atinja o que precisa atingir.

Há poucos dias, encontrei-me com Gonzalo na mesma Rua Bolívar. Por casualidade, era um domingo ensolarado. No bairro, os turistas tocavam em tudo e compravam pouco. Gonzalo fumava, enfileirava cigarrillos que o nublavam ainda mais o humor. Mas ainda assim resolvi contar sobre aqueles dias, a viagem a La Plata, sobre como impactou em  mim  aquela conversa que tivemos. E sobre as relações estranhas que pude encontrar naquele trem da Linha General Roca entre os guarda-chuvas e a poesia. Gonzalo alcançou o troco para o cliente que saía, diminuiu o volume da vitrola. E mal tirou o cigarro da boca para propor que vendêssemos juntos os guarda-chuvas e os livros. Que afinal seria um aluguel a menos, que poderia soar curioso para os estrangeiros. Que eu trouxesse logo os meus guarda-chuvas da Rua Estados Unidos.

* Conto selecionado para publicação no III Concurso Literário da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)

Uma resposta

Subscribe to comments with RSS.

  1. Milton Ribeiro said, on 28 de março de 2014 at 13:50


Deixar mensagem para Milton Ribeiro Cancelar resposta