Calle Soriano

Gorz (1)

Posted in Sem categoria by iurimuller on 21 de setembro de 2014

“De fato, a racionalidade econômica nunca pôde se exprimir em sua essência nas sociedades pré-capitalistas. Nestas, a racionalidade econômica sempre foi represada e entravada (…) por entendimentos entre produtores e entre mercadores para interditar a livre concorrência em mercados livres. Ela nunca pôde se impor aos produtores, pois estes eram senhores de seus meios de produção e consequentemente livres para determinar eles mesmos a intensidade, a duração e os horários de seu trabalho. O recuo da autoprodução e a expansão da produção para o mercado nada mudaram na situação: as corporações ou os grupos ditavam ao mercado os preços uniformes para cada qualidade definida por eles, e proibiam fortemente toda forma de concorrência. As relações entre produtores e mercadores eram necessariamente contratuais, e os mercadores, por si mesmos, aproveitavam-se dessa situação, pois se encontravam protegidos contra uma concorrência de mercado livre. A norma do suficiente – ganho suficiente para o artesão, lucro suficiente para o mercador – estava tão bem enraizada no modo de vida tradicional que era impossível obter dos trabalhadores um trabalho mais intenso ou prolongado prometendo-lhes ganhos mais elevados. Como escreve Max Weber, o trabalhador “não se perguntava: quanto posso ganhar por dia se fornecer o maior trabalho possível, mas apenas: quanto devo trabalhar para ganhar os dois marcos e cinquenta que recebo até hoje e que cobrem as minhas necessidades correntes”.
No primeiro livro de ‘O Capital’, Marx cita uma vasta literatura que atesta a extrema dificuldade que tiveram os donos das manufaturas e das primeiras “fábricas automáticas” para obter de sua mão de obra um trabalho regular, em tempo integral, dia após dia, semana após semana. Para forçá-los a isso, não era suficiente – como tinham feito os manufaturadores – retirar deles a propriedade dos meios de produção; era preciso igualmente, depois de ter arruinado o artesanato, reduzir a remuneração dos trabalhadores por unidade de produto a fim de obrigá-los a trabalhar mais para obter o suficiente; e era preciso, para isso, retirar-lhes o controle dos meios de produção para poder lhes impor uma organização e uma divisão do trabalho pelas quais a natureza, a quantidade e a intensidade do trabalho a fornecer lhes seriam ditadas como condições próprias da matéria.
A mecanização era, por excelência, o meio de chegar a esse resultado (…) O instrumento de trabalho torna-se assim inapropriável pelo trabalhador, e essa separação entre o trabalhador e o produto, assim como aquela entre o trabalhador e o próprio trabalho – que doravante existe dentro dele como a exigência muda, da parte da organização material, de tarefas quantificadas, predeterminadas e rigorosamente programadas -, essas separações demandam ser realizadas.
É somente sobre a base dessa tripla desapropriação que a produção pode se emancipar da arbitragem dos produtores diretos, ou seja, tornar-se independente da relação entre as necessidades e os desejos que eles sentem, o tamanho do esforço que estão dispostos a fornecer para satisfazê-las, a intensidade, a duração e a qualidade desse esforço.
É ainda essa tripla desapropriação que permitiu especializações funcionais cada vez mais estreitas; a acumulação e a combinação, num mesmo processo de produção, de uma massa de saberes técnico-científicos oriundos de disciplinas heterogêneas, incapazes de se comunicarem e de se coordenarem entre si, e cuja organização produtiva requeria um estado-maior e uma estrutura piramidal quase militar (…)”.

Fragmento do ensaio “A ecologia política entre a expertocracia e a autolimitação”, de André Gorz (1992). Publicado em “Ecológica” (Annablume, 2010), com tradução de Celso Azzan Jr.

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