Calle Soriano

Haikus, de César Aira

Posted in Sem categoria by iurimuller on 8 de fevereiro de 2018

Haikus, editora Mate.

Publicado pela pequena editora Mate, do tamanho de um envelope para balas, Haikus (2005) é uma das dezenas de novelinhas que César Aira espalhou, em desordenada difusão, pelas livrarias da Argentina. Busquei o livro na estante, onde esperava pela leitura desde que chegou de uma já remota viagem, depois de ler o ensaio de Fabián Casas na Review: escreve Casas sobre a poética de Aira, o vínculo do autor com a arte contemporânea e os seus inimigos, sobre a caótica distribuição dos livros de Aira no mercado editorial, a aparente despretensão que habita as suas novelas – que são dezenas, quase todas beirando as cem páginas, para mais ou para menos, por vezes editadas por casas invisíveis, ou desaparecidas, ou interioranas, ou, para que tudo se embaralhe, em alguns casos também pelas maiores do país.

Também reúne Casas, em seu texto, algumas das opiniões de Aira sobre a literatura argentina e os seus contemporâneos; sobre Saer, por exemplo, são graciosas as apreciações do autor nascido em Coronel Pringles, província de Buenos Aires.

Haikus se forma com a progressão de um solilóquio ensimesmado (nem todo solilóquio é necessariamente ensimesmado; pode se bifurcar infinitamente por um labirinto de temas e variações), da cobrança, entre desesperada e violenta, de uma dívida de reduzido valor por parte de um homem que afunda – e afunda em uma cidade, Buenos Aires, igualmente endividada e em crise, cidade que também ela se aproxima da loucura e que se debate entre os extremos do clima. Na novela o termômetro é um pêndulo que marcha do calor atroz que deixa idosos mortos pelas casas e ruas, até o frio quase polar que castiga e acelera a decadência dos que precisam sobreviver à intempérie.

Cada capítulo de Haikus é, ao mesmo tempo, um canto, uma oração e uma ameaça de morte; ou, mais do que nada, palavras que um homem joga ao vento, visto que não parecem nunca encontrar o seu interlocutor. Palavras com as que se imagina um novo dia possível com o pagamento da incessante dívida. Se o pagamento chegasse, pensa o narrador, poderia escapar, por alguns minutos, por meia hora, com sorte, das garras da tarde quente, sentar-se em um bar de esquina e, com o dinheiro que chega, pedir a cerveja mais gelada e ver a gente que passa. Poderia, também, refugiar-se por uma vez que seja no presente imediato, protegido, na evasão do momento, do tempo que verte: “el tiempo pasa todo el tiempo; hasta cuando no pasa nunca, está pasando, porque es lo único que hace (…). Y mis urgencias son mucho más inmediatas, estoy en otro ritmo: soy el segundero del reloj, y vos te estás portando como la aguja de la hora, cuyo movimiento nadie alcanza a discernir”.

É certo que o relógio e o verão e a cidade e a rua voltariam, logo depois, a recuperar a sua autoridade, sua violência. Mas, se ao menos a dívida fosse paga, algo teria se modificado: afinal, já seria possível voltar a pensar em outra coisa.

Sobre “A ocasião”, de Saer

Posted in Sem categoria by iurimuller on 12 de setembro de 2017

Busquei a edição brasileira de A ocasião, de Juan José Saer, por um estranho e certamente contraditório motivo: voltar a ler algo em português em meio à maratona de leituras hispânicas, boa parte dela, justamente, feita de textos de e sobre Saer. Foi a forma encontrada para, ao mesmo tempo, voltar ao meu idioma e não me afastar do texto do autor neste momento. A tradução de Paulina Wacht e de Ari Roitman para a Companhia das Letras foi editada em 2005 no Brasil, e A ocasião aparece ao lado de A pesquisa, Ninguém nada nunca, O enteado e O Grande entre os livros de Saer que a editora publicou. O estranho é que o autor não consta mais no catálogo da editora em seu site, e não sei dizer se isso se deve a um critério editorial, a algum erro ou desatenção ou se a editora perdeu os direitos de publicação do escritor no país.

A ocasião (1988, no original) é um texto-chave para entender o processo de escritura de Saer: no breve romance, estão presentes alguns dos elementos reiterados da sua narração, certas obsessões temáticas e um trabalho particular de linguagem. Se a frase e o parágrafo por vezes são esticados, enovelados e reencaixados ao infinito em textos como Ninguém nada nunca e Glosa (sem tradução para o português), em A ocasião o que se vê é um Saer digamos que mais veloz: aqui, a linguagem por vezes se ocupa mais das pretensões do enredo do que do seu próprio recolhimento, e as diversas modulações no tempo da narrativa também estimulam o emprego desta quase velocidade.

Espécie de pré-história dos textos que se ocuparão do território de Santa Fé em seus romances, o texto se afasta da temporalidade de personagens conhecidos da constelação literária do autor, como Tomatis, Gato e Pichón Garay e Washington Noriega, por exemplo, e se infiltra na relação entre Bianco, um ocultista europeu que, perseguido pelos positivistas de Paris, se exila na Argentina do final do século XIX, e Gina, uma jovem santafesina que logo se aproxima de Bianco. Entre Gina e Bianco, pairam umas quantas dúvidas – indefinições persistentes, angustiantes (ao menos para Bianco, visto que Gina parece, com o passar das páginas, se encastelar em um estoicismo inquebrável e silencioso) e que acabam por se tornar labirínticas.

O ponto de inflexão do texto, rapidamente perceberá o leitor, acontece no momento em que, depois de cavalgar sob chuva, entre o final de uma tarde e o começo da noite, da sua cabana no campo em direção à casa na cidade, Bianco encontra Gina em uma ocasião ambígua com o seu único amigo no país, o doutor Garay López – médico em Buenos Aires, herdeiro de uma das tradicionais famílias da região e sempre disposto ao galanteio inconsequente, às caminhadas com Bianco por este novo lugar e à conversação sobre o que separa e distingue o espírito da matéria; discussão que, para o europeu, custou a viagem para além-mar, o desterro e quem sabe o arrefecimento dos seus poderes.

Desde então, a mesma cena retorna, uma e outra vez, nunca com as mesmas cores, sempre mais sórdida, em uma escalada enlouquecedora, à memória de Bianco, que não pode mais viver em paz sem descobrir se houve de fato algo entre a sua mulher e o amigo: “Sentada numa poltrona, com o pescoço apoiado no encosto, a cabeça um pouco jogada para trás, as pernas esticadas e os calcanhares apoiados em outra poltrona, os sapatos de cetim verde jogados ao acaso pelo chão, Gina, de olhos semicerrados e expressão de prazer intenso e, para Bianco, um tanto equívoco, está dando uma profunda sugada num grosso charuto que sustenta entre o indicador e o dedo médio da mão direita. Em outra poltrona, com um cálice de conhaque na mão, um pouco inclinado na direção dela, Garay López lhe diz alguma coisa com expressão malévola, e Bianco não consegue saber se a expressão de prazer de Gina vem do charuto ou das palavras de Garay López que ela, apesar dos olhos semicerrados, parece ouvir com atenção sonhadora” (p. 29-30).

É Garay López o personagem que aproxima, no interior da obra de Saer, os textos que se situam antes, no tempo da narrativa, com os contos e romances contemporâneos do cosmos santafesino. A família Garay, tida como uma das fundadoras da cidade, desta zona geográfica na qual mergulha Saer, aparece de modo onipresente em sua obra: para além dos irmãos Gato e Pichón, protagonistas ou personagens secundários em distintos textos, também há espaço para o Garay López, o melancólico juiz de Cicatrices e, em A ocasião para o personagem homônimo, central para o desenvolvimento da narrativa.

A reiteração dos nomes próprios e dos sobrenomes e o vínculo com romances e contos anteriores coabitam este espaço de repetições com a incidência dos fenômenos naturais, do calor, das estações indefinidas, da chegada de tormentosas chuvas no enredo: como em outros textos de Saer, o clima incide bruscamente na narrativa, move algumas das ações dos personagens, desloca algumas convicções. Afugenta ou atrai mosquitos, atiça o ânimo dos cavalos, provoca cenas ambíguas entre seres humanos, espalha ou impede o avançar da peste.

Luz em agosto, de William Faulkner (em conversação com Juan José Saer)

Posted in Sem categoria by iurimuller on 21 de fevereiro de 2017

luz-de-agosto-faulknerBusquei Faulkner depois de ler Juan José Saer: talvez tenha sido um caminho inverso, mesmo para os leitores latino-americanos. Um caminho ao mesmo tempo ao revés (um caminho de volta, talvez) como também inevitável: após ler Saer com algum afinco, torna-se necessário retomar as origens de pelo menos parte – imagino que parte indispensável – do projeto literário que o escritor santafesino levou a cabo. Isso foi algo que me pareceu claro após ler Cicatrices, Glosa e os ensaios teóricos de Saer – ensaios que, em certas oportunidades, como acontece com os que estão reunidos em El concepto de ficción, ocupam-se nomeadamente de Faulkner.

De modo que, neste caminho de retorno, li neste início de ano, neste verão chuvoso no sul do mundo, o Luz em agosto (1932), de Faulkner, na edição da Cosac Naify. Antes, havia lido, não sem temores, não sem interrupções bruscas, O intruso, novela que não me pareceu a melhor porta de entrada para a obra em questão. Com Luz em agosto o processo foi distinto: não um caminho simples, mas quem sabe, sim, o início de algum entendimento do que acontece aqui sobre o como se narra, quantas vezes se narra, qual a direção do texto e como alguns dos artifícios vão alcançar, apaixonadamente, autores como Juan José Saer e Juan Carlos Onetti – para mencionar dois dos escritores do Rio da Prata que devem ao norte-americano traços que do que levaram adiante em posteriores contos e romances.

Em Faulkner, além da “perfeita página esculpida”, como li alguém dizer, está o recurso da repetição da narração para dar conta de um mesmo (e ao mesmo tempo algo deslocado, a cada vez) acontecimento. No caso de Luz em agosto, a linearidade se quebra muitíssimas vezes, e há nítida sobreposição temporal para dar conta, desde a intenção do autor, da travessia de Lena Grove e de Joe Christmas pelo sul dos Estados Unidos: assim, um incêndio, uma fuga, uma conversa ou um assassinato podem ser contatos repetidas vezes, de distintos ângulos, sem, no entanto, oferecer a ilusão de que a multiplicidade das miradas pode oferecer qualquer totalidade ou exaustão de um momento ou sucesso. Há algo desta tentativa (bem como a suposta banalidade de alguns gestos e certa presença demoníaca na narrativa) também em Cicatrices (1969), de Saer.

O que também ocorre, de forma radicalizada e perene, no projeto de Faulkner, é a tantas vezes mencionada construção geográfica que, por momentos, confunde o mapa literário com o plano real do sul dos Estados Unidos. E esta ambientação no ficcional condado de Yoknapatawpha (situado, a partir da caneta do escritor, a noroeste do Mississippi) encontrará semelhança, tempos depois, na zona geográfica em que se ergue, pouco a pouco, a ficção de Saer – a nunca mencionada Santa Fé se estende em seus romances, abarca cidades da região e forma um mesmo núcleo espacial, entre a ficção e os mapas correntes, por onde se movimentarão personagens que igualmente se repetem. Quanto à geografia, pode-se dizer que também em Onetti e na sua Santa María ficcional está a semente de Faulkner, ou ao menos seu desejo e seu impulso.

Por fim, durante toda a leitura de Luz em agosto esteve presente comigo a questão da nomeação no romance: para além do nome de um dos personagens principais (Joe Christmas, cuja correspondência nominal é evidente), o problema do nome encerra outros conflitos, como a busca de Lena pelo homem que a engravidou e que não voltou a encontrar, cujo nome, para ela, seria Lucas Burch, ainda que na nova cidade tenha se apresentado como Joe Brown, e nessa mesma procura Lena acabe por se encontrar com um outro homem, Byron Bunch, que a acompanhará com resignação apaixonada. Mesmo no gesto de nomear há, em Luz em agosto, perda e aproximação, reinvenção e engano.

Jogo de damas

Posted in Sem categoria by iurimuller on 14 de julho de 2016

É uma noite de inverno e dois homens jogam damas na Praça da Alfândega. A iluminação pública é insuficiente e está claro que pouco devem enxergar as peças. Ao redor, as bancas de artesanato, roupa, panos, redes, terminam de fechar. Penso no que farão os dois jogadores quando terminarem a enevoada partida. O primeiro homem: a) leva, na mochila que carrega nas costas, uma muda de roupa quente e uns artigos a mais, próprios para o compromisso a que planeja chegar na sequência. Para tanto, depois de ganhar ou de perder, de guardar numa caixinha as peças brancas, deve rumar ao Mercado Público e então ao subterrâneo dos trens. Primeiro, irá trocar as vestes no banheiro da estação, sempre na terceira porta. Depois, devidamente pilchado, precisa de um vagão que o deixe em Esteio, onde acontece, por volta das dez, um baile de música gaúcha, muito perto da rodovia; b) a partida termina e ele fica, na verdade, algo desorientado na Alfândega vazia. Resolve atravessar a praça, de um extremo a outro, movido por pensamentos estranhos. Agora está na breve Avenida Sepúlveda, em frente ao cais, e sabe que mais um passo não poderá dar, ainda mais naquela hora, com os portões fechados. Olha para trás, procura em meio às árvores a sombra do companheiro de damas. Quem sabe está em tempo de outra partida, a última, ele pensa, pelo menos até que uma ideia melhor de como prosseguir com a noite o assalte. Mas não vê movimento algum, o lugar, com exceção dos que dormem encolhidos nos bancos, está mesmo deserto; c) encerra o jogo com pressa, pensa mal as últimas rodadas, entrega as peças sem parar. É observado com irritação pelo companheiro de damas, que não se contenta com uma vitória tão fácil. É que havia olhado para o relógio há pouco, e crê que está no horário limite para entrar num dos inferninhos que costeiam o largo Glênio Peres, se é que desta vez terá coragem de passar pelo letreiro luminoso. O segundo homem: a) percebe que as suas peças estão mal distribuídas pelo tabuleiro e que a vitória, neste quarto desafio do dia (antes, havia vencido um engraxate da Borges com alguma velocidade, e perdido duas vezes para o garçom de uma galeteria da Rua da Praia), está mui distante. Ter de correr atrás do resultado o perturba, não sabe, nunca soube, mover bem as peças quando se sente pressionado. Consola-o a sabedoria de que ainda lhe cabem uns doze anos de vida e centenas de partidas na Praça da Alfândega e no Parque Marinha do Brasil. Com sorte, ainda fará um par de viagens a São Borja, onde o aguarda, ele crê, um antigo amor; b) mira o tabuleiro: tem mais cinco peças, o adversário conta com seis, irá ganhar ou perder em questão de minutos, e isso não importa mais. O que precisa: sair dali a tempo de pegar o seu ônibus na Salgado Filho, descer na esquina de sempre, caminhar por quatro quadras, subir três andares de escada, ligar a estufa movida a gás na sala, encontrar o controle da televisão, apontar firme para o aparelho e buscar um cobertor para, enfim, entregar-se ao que Grêmio e Sport Recife podem lhe oferecer num estádio distante.

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o que fazer quando se olha o rio

Posted in Sem categoria by iurimuller on 17 de agosto de 2015

desvencilhar-se das moedas de 25 centavos e dos óculos de sol comprados no camelódromo de uma metrópole quente;
fixar os olhos com toda a força e a perseverança possíveis no horizonte e tentar enxergar o que há na outra margem;
concentrar-se no ritmo das ondas, menos espalhafatosas do que as do mar, mais gentis do que as do mar e também mais pacientes, e pensar que os rios, tão descartados pela opinião pública, podem ser mais interessantes, portanto, do que o próprio mar;
admitir que qualquer corrente de água exerce sobre qualquer um de nós uma atração ao mesmo tempo vital e suicida;
perceber que alguém já havia pensado antes sobre o que o movimento da água provoca nos seres humanos: “Dobra à esquerda. Por quê? Porque não pode resistir à atração que uma corrente de água exerce sempre sobre nós. O pobre homem não seguirá muito tempo pela margem”;
imaginar quem havia estado por último no exato lugar em que, agora, se está olhando o rio: 1) um trabalhador no intervalo do almoço; 2) um turista deslumbrado; 3) três jovens que acendem cigarros que seis meses antes eram proibidos pelo governo;
descer, não sem perigo, para a curta faixa de areia que se estende diante da água e coletar os primeiros objetos que as ondas entregarão: 1) uma garrafa vazia; 2) um bispo de plástico que pertenceu a um tabuleiro infantil de xadrez; 3) um pente vermelho com cabelos ainda enrolados nas pontas;
cogitar até onde se conseguiria nadar por aquelas águas, recordando índices inexatos de uma aula de natação da época do colégio;
dormir quarenta e cinco minutos com o barulho da água muito perto dos ouvidos e despertar, desconcertado, com outro ruído, que pode ser o de uma gaivota ou de um ciclista ou de um guarda de trânsito;
beber vinho diretamente da garrafa e observar, durante a tarde, quanto tempo o céu se demora para modificar a luz do dia e quanto tempo depois esta luz já modificada transformará a cor da água;
escrever uma carta absurda e jogá-la no rio antes que ela se torne uma carta absurda e também perigosa.

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Folhas do vento norte (IV). A poeira das casas

Posted in Sem categoria by iurimuller on 9 de setembro de 2014

O filtro de papel era grande demais para o espaço da cafeteira, de modo que teve que cortar um pedaço com a tesoura, no formato de um arco, para que pudessem estar com duas xícaras nas mãos poucos minutos depois, sentados à mesa da cozinha. Não era o café a bebida mais provável para aquele início de noite quente, mas naquela casa o hábito pode mais que o clima e as temperaturas – a casa em que desembarcara há algumas semanas, depois que um caminhão pintado de laranja e com mensagens religiosas estampadas na caçamba deixou seus poucos móveis e algumas caixas de papelão numa esquina silenciosa da cidade.

Era a quarta residência que habitava desde que passara a morar na cidade. Desde então, viveu tempos de um estranho nomadismo, de casas que se esvaziavam e que voltavam a se encher de sofás, cadeiras, livros, e de apartamentos nos quais dormia por uma ou duas noites, e que então não voltava a ver. Não foi assim por capricho ou porque as adaptações eram custosas; na verdade, as sucessivas mudanças se deveram às circunstâncias, aos papéis que faltaram para seguir numa casa, ao dinheiro que agora possibilitava algo mais do que um quarto de pensão, às companhias que trocavam de bairro e de maneira consciente ou não acabavam por levá-la junto com as malas e os pertences.

Sobre isso conversavam, sobre aquela sina dos habitantes da cidade: não pertencer, mudar-se com frequência e disciplina, ter os casacos sempre a postos, longe dos cabides definitivos dos armários clássicos, como que preparados para trocar de lado a qualquer momento. Com poucos exemplos, a medida em que a cafeteira expelia fumaça tal qual uma locomotiva em apuros, perceberam que era um traço comum de muita gente – alguns, mais flexíveis do que os inadaptados de sempre, depois de certo instante (a quarta ou a quinta mudança, por exemplo), nem percebiam mais. Trocavam de casa ou de apartamento, de andar ou de pensão, como quem troca de calçada para evitar o sol do meio-dia.

O café já estava servido nas duas xícaras de vidro e as partículas de açúcar permaneciam visíveis no fundo dos recipientes. Tomavam a goles longos, indiferentes ao sabor ou à doçura da bebida. Algumas caixas ainda estavam fechadas com fita isolante no chão da cozinha: dentro, repousavam talheres, pratos, panos de prato, potes de muitas cores, alguma chaleira com mais anos de vida do que tinham os seus donos. Os demais cômodos estavam tão ou mais esvaziados. A mudança ocorrera há poucos dias, restava muito por fazer. Ela disse que desta vez se sentira bem desde o princípio, que lhe agradavam as paredes envelhecidas da casa, a rua de pouco movimento em que se situava, e mais do que nada a existência da claraboia interna, o traço mais surpreendente da edificação que, há décadas, fora erguida nas cercanias do Parque.

E nem bem havia terminado de dizer que sim, que aquele lugar era agradável, muito mais do que os últimos dois ou três, e que viveria ali por meses, quem sabe alguns anos, que acreditava enxergar anunciações de felicidade nos janelões antigos, e então trancou a frase, de súbito. Após alguns segundos de silêncio, teve de remendar em tom de confissão: como se permanecer ou sair outra vez dependesse apenas de mim, ou de nós. E riram um riso baixo e nervoso, como quem ri da própria inocência.

***

A melhor parte disso tudo, ela tornava a dizer, está contida na própria ação: ao estar sempre pelas ruas, disponível aos sofás que te oferecem, aos catálogos de imobiliárias e mesmo aos quartos de hotéis, conhece-se alguns cantos até então completamente invisíveis da cidade. E algo sobre o funcionamento deste lugar. Por exemplo, dizia, eu só pude descobrir a força que o vento da cidade pode alcançar numa noite em que, ao sair de alguma festa, acabei por passar a madrugada na sala de uns amigos que agora já me são distantes, perto do Centro. Era um apartamento no décimo andar de um prédio antigo, que por sua vez foi construído na parte mais alta da rua.

Lá, quando chegou, dirigiu-se diretamente para a sacada. Dali, se viam os bairros ao longe e os trilhos da entrada da cidade, era uma visão aberta para as luzes da noite. E o restante, ela disse, descobri quando tentei dormir: eu lembro que precisava desesperadamente acordar cedo no outro dia. É certo, já conhecia a força do vento norte, seus lamentos de pássaro triste, e do vento sul, este de cantar gelado e capaz de arrepiar a pele e fazer qualquer um se encher de blusões mesmo no outono. Mas não havia passado uma noite inteira em claro por conta do barulho do vento, ao menos até aquele dia.

O vento fazia tremer as janelas dos quartos e da sala, derrubava os vasos de plantas que ficavam na sacada, tremulava as cortinas, impacientava os gatos. Não chegava em rajadas, mas num soprar constante e barulhento. Em algum momento, pensou que nos primeiros segundos o ruído havia sido tão forte que ele permanecera nos ouvidos e na cabeça, mas não no céu da cidade – e o que o restante da noite de insônia foi o resultado da imaginação atormentada pelo vento, e não pelo próprio vento. Enfim, disso jamais saberá. Na manhã seguinte, quando se despediu e buscou um ônibus que a levasse à Universidade, tentou ver entre as pessoas que esperavam na parada de coletivos alguém com olheiras parecidas com as suas. Assim, a hipótese de ter ventado forte por sete horas seguidas pareceria mais real.

Não foi outra vez àquele apartamento, embora tenha sonhado algumas vezes com cômodos e paredes similares. Agora, as xícaras estavam vazias, a cafeteira ainda funcionava. Tornaram a servir o café. A noite já parecia mais fresca e da cozinha era possível perceber que muita gente caminhava pelas ruas. O Parque, por sua vez, estava às escuras. Dentro de poucas horas, seria setembro novamente.

***

Aos poucos, desbravavam os cantos da casa nova. A claraboia foi o primeiro divertimento inesperado, mas houve mais: o banheiro com lajotas amarelas e laranjas, por exemplo, e cujo ligeiro contraste entre as cores parecia formar o mapa de algum país distante. Os poucos livros que sobraram na estante dos antigos proprietários, basicamente romances franceses com a lombada em profundo processo de desgaste. E as duas fotos que ela encontrou numa gaveta. Na primeira, um casal mais ou menos na altura dos quarenta anos de idade – a foto é nitidamente velha, hoje teriam um par de décadas a mais, no mínimo – posa para uma câmera em frente ao cassino de Mar del Plata; na outra, vê-se um homem caminhando de costas na direção de um avião, e não é possível identificar que cidade e aeroporto são aqueles.

Logo haverá outras fotos e objetos nas gavetas: fotos suas e dos seus, das cidades por onde passou. Alguns poucos cartões-postais que colecionou durante a vida, páginas das cartas que guardou. Moedas e pouco mais, mas com algo ocupará aquela casa, e algo ficará, perdido ou esquecido, por vezes dá no mesmo, para os próximos habitantes, que inevitavelmente chegarão. Oxalá demore, ela pensa. Está feliz ali, ela que andava desacreditada com os lares. Por pouco, não pagou a mensalidade de um hotelzinho da Avenida e organizou as coisas por lá. Mais fácil seria, apesar da estranheza do gesto. Preferiu insistir um pouco mais, e agora estava ali, tomando a segunda xícara de café passado na cozinha.

Quem eram os antigos habitantes da casa da claraboia e dos ladrilhos coloridos?, eles se perguntavam. Os funcionários que alugaram a morada de nada sabiam, e pouco se interessavam pelo passado dos lugares. Através dos rastros (as fotos, os livros), pouco se aproximavam de uma imagem minimamente nítida dos moradores. O certo é que deixaram o piso em bom estado de conservação, bem como os móveis que não tiraram da sala. Pode ter sido gente que nasceu na cidade e passou uma vida inteira ali, a uma quadra e meia do Parque, sempre perto das árvores, ou alguém que veio de fora e passou pouco tempo debaixo da claraboia: alguém que viu os negócios desmoronarem numa das galerias do Centro, ou que perdeu, por tragédia ou desamor, as companhias que o trouxeram para cá.

E deles, o que diriam os próximos, os que noutra manhã ensolarada desceriam de um caminhão de cor berrante, com mensagens religiosas na lataria, e passassem a ocupar os mesmos cômodos que desbravam agora, com entusiasmo inaugural? Talvez vislumbrem na poeira do tapete alguma história ou circunstância, talvez imaginem que na verdade eles eram uns quantos nômades que saltavam de um lugar a outro, deixando sempre algo pelo caminho, alguma coisa de que nem se lembrariam depois. Logo a noite tomou conta em definitivo do céu, a companhia foi embora para alguma outra casa, ela se viu sozinha – e em meio ao vento que corria na rua chegou setembro, ansioso e sem aviso, mas disso ela só percebeu na manhã seguinte, quando olhou para o calendário da parede.

Folhas do vento norte (III). Nuvens no fundo do mar

Posted in Sem categoria by iurimuller on 5 de agosto de 2014

Olha como estão estranhas as nuvens, ouviu. E concordou que aquele era mesmo um dia incomum, ao menos no que diz respeito ao céu. O amanhecer molhado logo deu lugar a uma tarde fechada que, pouco a pouco, cedeu os espaços para a neblina. Com o crepúsculo, as luzes amarelas da cidade mostravam que as nuvens estavam a ponto de tocar o chão. Fragmentos da neblina sobrevoavam as ruas, roçavam nas árvores mais baixas, escondiam o teto dos postos de gasolina e adentravam os lugares menos imaginados. Em pouco tempo, naquela hora em que a tarde se retira para que a noite assuma os trabalhos, a cerração havia tomado as esquinas e os montes, descera para a cidade como se ali resolvesse ficar por alguns anos. Não se tratava de consistência física, mas de uma forte impressão de permanência.

No Centro, os caminhantes que quase sempre estavam alheios a tudo, e não seria diferente com a posição das nuvens num céu tão repetitivo, desta vez pareciam espantados: andavam devagar porque a atenção estava nos olhos, intrigados com aquelas nuvens de voo baixo, como pássaros recém-saídos de gaiolas. Alguns homens retiravam câmeras do bolso para fotografar, ainda que o fenômeno fosse delicado demais para a maioria das lentes. Houve também quem caminhasse depressa, um tanto por susto. Pensavam apenas em chegar logo em casa, para então fechar as portas, as janelas, tapar as saídas da lareira, se fosse o caso de ter uma no cômodo mais central. Assim impediriam que as nuvens também tomassem conta da sala, da banheira, da louça ainda por lavar que esperava na pia da cozinha. Que ocultassem os papéis da escrivaninha, escondessem o carro na garagem estreita e assim seguissem adiante.

O temor de ser tragada pela fumaça que descia não a atingia. Mais do que isso, o que gerava era curiosidade. Saiu a caminhar para tentar descobrir do que aquilo era feito. No Calçadão, percebeu que elas flutuavam com alguma velocidade, que não se contentavam em baixar e então ficarem quietas. Foi quando deteve os olhos no termômetro: enxergava a temperatura – digamos que naquele princípio de noite o aparelho apontava para dezoito graus – e logo em seguida um floco de nuvem se deslocava para o lado e tornava mais difícil a leitura, como se padecesse de uma súbita e assustadora miopia. Mas, segundos depois, este fragmento de névoa rumava para outro lado, quem sabe para a Praça, ou mesmo tomasse as ladeiras que acabam por desaguar no Parque, e então aqueles números se tornavam legíveis outra vez. Não pôde evitar um sorriso, e naquela hora viu que o lugar estava quase vazio. Há quanto tempo estava atrás dos rastros e da composição da neblina?

Metros adiante, viu-o, tal como uma aparição que só aparece mesmo em noites de cerrado nevoeiro, fantasma que não poderia tolerar a luz do sol no rosto. Parecia tão instigado quanto ela, e espiava para dentro de uma galeria para comprovar se as nuvens também haviam entrado naquele túnel por entre dois prédios comerciais. É possível que a tenha visto no mesmo momento, ela que deixava o termômetro para trás. Aproximaram-se, riram do acaso e da estranheza do que ocorria ali, agora sem outros espectadores. Ele disse que estava surpreso, que os jornais anunciaram que seria uma noite de lua grande, e não de uma tempestade de neblina como a que estavam vendo. Caminharam juntos, talvez esquecendo que o gesto pertencesse a outra época. E só detiveram o passo quando, na frente de uma entrada iluminada por duas lâmpadas brancas, um cartaz anunciava que a última sessão do Cinema começaria em poucos minutos. Era um filme sobre o fundo do mar, ao que parecia pelo título e a fotografia da chamada.

***

Pagaram menos de duas notas pelos ingressos e se apressaram para entrar na sala, deixando para trás as pipocas e os adereços. O ambiente estava quase vazio; nas fileiras do fundo havia alguns casais em silêncio e, um pouco mais à frente, alguns senhores idosos que esperavam com a coluna reta o início da sessão. Escolheram dois lugares no canto esquerdo, distante dos demais. As luzes se apagaram rápido, mas a tela se mantinha desligada. Algum problema técnico, talvez. Uma mulher jovem virou-se para a cabine do projecionista para saber o que acontecia ali, mas nada pôde descobrir. Sobravam alguns ruídos dispersos de conversação em voz muito baixa e o barulho de uma porta que batia ao longe. Por um momento, entre o susto e a graça, ela pensou que não poderiam mesmo enxergar nada ali dentro, pois a neblina teria se apoderado também daquele lugar. E nem bem terminou o fantasioso raciocínio quando a função começou e surgiram os primeiros créditos do filme em letra branca, numa filmagem que já parecia mostrar um cenário marítimo. Com o lanterninha, três rapazes atrasados procuravam uma poltrona qualquer nas primeiras filas, constrangidos pela situação.

Descobriram com rapidez algo que nem o cartaz e tampouco os créditos diziam: que a película era toda feita de imagens e sons, sem a presença de narração ou qualquer palavra escrita. Nem por isso deixava de ser conduzida por alguma espécie de enredo, é certo, mas se tratava de uma linha distinta e sutil. Por uma hora e meia, assistiram, em meio a um intenso silêncio, a peixes que nadavam nas cavernas mais fundas do Pacífico, espantaram-se com golfinhos que precisavam desviar de cargueiros em meio a uma longa travessia pelos mares, contemplaram plantas que se fixavam em rochas subaquáticas, algas, cores, fluxos d’água sem interpretação aparente para o espectador que sempre se manteve longe dos oceanos. Mais de uma vez, ela pensou em interromper o silêncio e conversar com ele num balbucio curto, quase indiscernível, para tentar saber qualquer coisa sobre o que havia feito dos últimos dias, mas viu que o companheiro de sessão estava mesmo atrelado ao destino dos seres do mundo abissal. Era preciso esperar que aquilo terminasse, embora fosse complicado saber em que ponto estavam – saíra sem relógio e o filme certamente se encerraria de modo abrupto, sem grandes anúncios de despedida.

Algumas cenas depois, a câmera deixou o fundo do mar e alcançou as águas desde o alto, numa tomada que indicava o fim da história. Os créditos finais apareceram na tela e as luzes dos corredores enfim se acenderam. Os senhores aplaudiram com surpreendente aprovação o que tinham acabado de ver. Aos poucos, todos já estavam no saguão do Cinema, que por sua vez está a poucos passos da rua. Boa parte da noite se passara ali dentro, no fundo do mar. E se antes a cidade já estava quase vazia (e os seus habitantes empenhados em escapar da neblina), por estas horas os caminhos estariam ainda mais desertos. Decidiram sair para a rua outra vez, deixar o Centro e encontrar algum espaço para conversar. Mais do que isso, queriam ver se as nuvens ainda sobrevoavam a cidade com o mesmo afã de antes da sessão.

***

Bastou colocar o pé esquerdo na rua para ter de fechar os olhos. Um vento forte e quente esparramava folhas pelo Calçadão, desarrumava cabelos e roupas, fazia-os recuar. Balançava placas e enlouquecia os cães, e teve força suficiente para afastar a névoa dali – ao longe, ainda se via seu rastro, para além dos montes. Demorou um par de instantes até que pudessem reabrir os olhos, mirar em volta. No céu, a prometida lua grande chegara, e iluminava tudo: podia mais que a luz artificial das luminárias públicas, que os letreiros envelhecidos das lojas de rua. Como que saída do fim do oceano, a lua grande os convidava a caminhar. E então rumaram ao Parque, num caminho quase automático, sem reparar em quase nada do trajeto.

Aquele não era um vento novo, desembarcava na cidade a cada agosto e voltava com certa frequência em outubro e em dezembro. Era raro de ser encontrado nos primeiros meses do ano e permanecia em algum esconderijo da Serra no início do inverno. E quando chegava, demorava para ir embora. Vento de carregar pétalas de flor e pequenas porções de terra, parecia fechado para estudos e naturalizações, porque surpreendia sempre. Mesmo os que viviam na cidade há décadas se mostravam despreparados para a sua chegada; na varanda de uma casa no norte, restava lamentar quando ele chegava espalhando as folhas dos jornais, mudando o humor mesmo das mulheres mais estáveis do lugar. E, tal como a neblina que aparecera horas antes, o vento também tinha o estranho poder de entrar pelas frestas, de não esperar convites. Alguns diziam que desde o seu primeiro sopro a regra do mundo mudava e tudo passava a ser uma questão de casualidade.

Quando chegaram, o Parque já estava com o céu limpo. Num espaço plano de grama, adolescentes tomavam vinho em garrafas de plástico e formavam um círculo. Eram os únicos seres acordados naquela hora; as cigarras já haviam desistido de cantar. Eles se aproximaram em silêncio, sentaram a uma distância em que escutariam as conversas com alguma clareza. No círculo, falavam da névoa de pouco antes, assunto que talvez estivesse em outras rodas, em outras regiões da cidade. Um deles começou a ler um poema improvisado, e antes de recitar os versos esclareceu que havia escrito naquela mesma tarde, enquanto via a Avenida abdicar da cúpula dos seus prédios para o controle das nuvens: ‘estão nublados / os dias os livros o céu / nublado o meu passo / nublada a minha cor / as minhas noites cheias de nuvem / que escondem luzes e catedrais (…)’. Ao lado do Poeta, uma menina disse, olhando diretamente para os dois forasteiros, que em tempos estranhos assim, de cerração e ventania, mesmo os poemas só poderiam seguir as regras do acaso e dos encontros fortuitos.

Publicado na revista o Viés.

Folhas do vento norte (II). Depois do sonho

Posted in Sem categoria by iurimuller on 5 de agosto de 2014

Não foi a primeira vez que acordou durante aquela madrugada, mas sim a interrupção definitiva do sonho. Antes, uma moto de motor barulhento demorou para deixar a esquina do prédio onde morava, ao lado da Ponte Velha. Mas ao fim acelerou e saiu, e assim ela pôde voltar a dormir. Mais tarde (não sabe o quanto), foi a vez de despertar com passos pesados que subiam as escadarias do edifício, talvez no segundo andar. Alguém que voltava tarde demais de uma festa e deixava para trás os filtros do silêncio e da vizinhança. Reacomodou os travesseiros e os lençóis – era verão, fazia um leve calor na rua – e outra vez retomou o sono. Desistiu quase uma hora depois, quando um grupo de pessoas se sentou no meio-fio que fica vinte metros abaixo da sua janela e iniciou uma conversa em voz alta, alegre, como quem acaba a noite e percebe que há o que se festejar. Foi quando resignou-se a acordar e passou a escutar os diálogos que se confundiam com os apitos que o vento trazia de longe.

Com um lamento, sentou-se na cama, ainda emaranhada nas cobertas. A combinação de ressaca e sono fazia com que o despertar, abrupto e levado a cabo ainda antes do amanhecer, fosse confuso, de poucas percepções dentro do quarto. Logo os primeiros rasgos de luz entrariam pela janela, os últimos habitantes da noite (provavelmente aqueles que ocupavam o meio-fio) iriam embora atrás de camas próprias e alheias e os sons então se modificariam. Seriam agora os ruídos de uma cidade que acorda num sábado preguiçoso, e não a que resiste em dormir, e esperneia como pode para persistir na madrugada que cai, numa tentativa que leva inevitavelmente ao fracasso e ao sol. E foi quando os insones deixaram enfim as cercanias do prédio que ela ouviu com maior nitidez os apitos que soavam ao longe: algum trem adentrava a cidade, vazio com os seus vagões, isto é, apenas com o maquinista e um ou dois auxiliares e a carga que transportavam, e não com os tantos passageiros que estariam ali se estivéssemos em outro tempo, mais remoto.

O apito saía do entorno da Estação, ganhava força no ar ao atravessar os descampados que ainda têm lugar na região, perdia parte do ímpeto ao se lançar contra os prédios da Avenida e recobrava a força quando descia na direção do Parque. Eram sete da manhã quando voltou a escutá-lo e então levantou as persianas da janela, cansada de rolar no colchão que não a deixaria mais adormecer naquele dia. A cabeça, ainda tomada pelas nuvens do álcool, se mostrava um pouco mais lúcida – e ao sentir o primeiro copo d’água descer pelo corpo pensou que estava em jejum há cinquenta horas, pois pode perceber o trajeto inteiro dos goles dentro de si. A poucos quilômetros dali, o armazém de paredes laranjas abria as portas na mesma hora em que ela jogava água no rosto e se preparava para que o dia começasse de alguma maneira. O armazém abre tão cedo porque o dono, refém de outras épocas, ainda espera que os clientes tenham pressa para comprar os jornais que lhe contariam, por linhas tortas, o que aconteceu ontem em Porto Alegre, em Roma, quem sabe até em Gaza.

***

Deixou a casa no início da tarde, depois de almoçar o que encontrou no caminho que vai da geladeira ao armário. Logo estava no Parque – área iluminada pelo sol grande daquela hora, ainda vazio, à espera dos caminhantes e das bicicletas, das bolas de futebol e dos cigarros de maconha. Dois funcionários da limpeza resgatavam da grama algumas latas de cerveja e uma garrafa de plástico que, doze horas antes, havia abrigado dois litros de vinho colonial. Percebeu que o sol refletido no rosto revigorava mais do que qualquer remédio para a ressaca. Perto da escadaria que leva ao Hotel, um homem lhe entregou uma folhinha e pediu um punhado de moedas. “Pode ler, moça, é poesia e eu que fiz”. Mais adiante, quase nas quadras de futebol, a sombra dos abacateiros aliviou o calor e a visão. Dali se ergue um alto barranco, verde e embarrado mesmo quando não chove, que termina numa outra avenida. No seu topo, é protegido por uma consistente fileira de plátanos. Trata-se de uma cena que a acompanha através dos anos e que depende sempre do ângulo e da estação: no outono e vista de cima do barranco, a paisagem mostra troncos que mal lembram os plátanos que tinham sido, dilapidados pelo frio e sem as suas folhas; na primavera, visto de baixo, o cenário formado por árvores exuberantes quase que esconde a cidade que cresce ao fundo (e só há espaço para aquelas folhas, maiores do que a palma das suas mãos).

Parada em frente à elevação, contemplou as árvores por vários segundos. E tão logo abdicou de mirar os plátanos, viu que poucos metros à frente andavam duas das presenças da noite anterior. Como ela, pareciam sem rumo. A diferença é que buscaram companhia, e não a solidão, e falavam tão alto e sem constrangimento que escutava uma e outra palavra de onde estava. Preferiu esperar um pouco mais, deixar que se fossem: haviam participado da madrugada e já parecia muito para os personagens em questão. O estranho é que, horas atrás, eles mais pareciam dois seres irreais na neblina, gente que ao atravessar o Túnel a pé, por exemplo, sairia do campo de visão e também do pensamento, para desaparecer por uns tempos e sair sem rastros ou memórias recentes. Entre as árvores, os cachorros e a roda de violão, no entanto, haviam recobrado realidade e por isso a incomodavam tanto. Esperou que tomassem uma trilha distinta e voltou a andar no seu ritmo.

Deixou para trás uma pracinha com brinquedos, um chalé abandonado, dois ou três pequenos grupos de estudantes que tomavam mate, atalhos construídos com britas, um prédio alto que contrastava de imediato com a planura e só então viu o ambiente se transformar, perder traços de centro e ganhar forma de arrabalde. A vegetação, já alta, crescia sem qualquer cuidado e cães soltos perseguiam com grande alarido um Fiat 147 branco que cruzava uma ruela improvisada no espaço baldio. Quero-queros sobrevoavam a área e um dos pássaros pousou em cima de uma placa desgastada pelo tempo e na qual se podia ler: MANUTENÇÃO E CARGA DOS VAGÕES À DIREITA. Quase sem perceber, havia caminhado até a Estação Ferroviária. Viu ao seu lado o prédio central do lugar, como que paralisado pela luz da tarde de sábado, e aparentemente para sempre acorrentado a um tempo morto. Encontrou um degrau e sentou-se no largo que se abre aos fundos da plataforma.

***

Os barulhos ali eram todos difusos: animais correndo no descampado em frente, poucos funcionários nos galpões de trabalho, andarilhos que passavam com rostos curiosos e seguiam sempre em frente; naquela hora, nenhum trem partia ou chegava na cidade. Ela aproveitou o quase-silêncio para olhar em volta e para dentro, e não estranhou que chegassem umas quantas vozes repetidas, de situações que havia lido e histórias que um dia escutou. “Por Santa Maria passavam trens de todos os lugares, trens que atravessavam noites e países, a estação aqui estava sempre cheia”. “E quando alguém chegava de fora, mesmo que fosse de uma cidade relativamente próxima, como Porto Alegre ou Uruguaiana, sempre se depararia com carros na estação à espera dos forasteiros, carros enviados pelos hotéis da Avenida ou por alguma firma”. “Não era preciso viajar para vir até aqui. Tinha quem viesse pelos jornais de fora, pelos restaurantes que funcionavam mesmo durante as madrugadas, pelo café passado que não se encontrava em nenhum outro canto desta cidade… ou para se despedir, nem que fosse de gente estranha, de alguém que nunca tinha visto antes, mas que pôde conhecer ao menos os olhos”.

E então imaginou-se sentada não no degrau disfarçado de mureta, mas num dos bares da estação, quem sabe o que existiria à esquerda de onde estava sentada agora. Via-se num ponto impreciso da noite, com um copo de café em cima da mesa. O salão estaria esvaziado, com uns poucos resistentes sentados e à espera de quem chega de longe. Duas lâmpadas fracas iluminariam apenas o centro do ambiente. O relógio caminharia devagar e quase nada interromperia o marasmo daquele refúgio até que o trem fosse percebido pela primeira vez. Ainda longe, costeando os morros da entrada da cidade, perto das quintas e das modestas plantações. E, rangendo nos trilhos e lançando o apito no ar, cada vez mais próximo, faria com que as criaturas do bar despertassem num mesmo rompante e rumassem para a plataforma. A plataforma que ainda existe, e que agora serve de abrigo para os moradores de rua escaparem da chuva e do vento frio.

Enquanto pensava, o escuro começou a recuperar pedaços do céu com pouca paciência. Ela se levanta e começa a caminhar de volta para casa. Não foi vista por ninguém, nem ao chegar nem ao abandonar o lugar. Poderia até mesmo correr pelo largo, bater nas janelas rachadas ou gritar na plataforma como uma louca, mas ninguém a veria. Se ainda havia alguém no local, estava num ponto distante ou escondido pelos cantos. Não muito longe, em cima de uma ponte que se ergue sobre vagões abandonados, alguém (uma sombra, não mais que uma silhueta) observa os trilhos que se bifurcam ao longe e espera por algum apito que anuncie o fim da tarde ou a chegada de uma serpente cansada num bairro quase esquecido da cidade.

Publicado na revista o Viés.

Folhas do vento norte (I). Ônibus noturno

Posted in Sem categoria by iurimuller on 5 de agosto de 2014

A Avenida está quase vazia. É sábado, dia de aulas esparsas e pouca gente na Universidade e nos arredores. Passou a tarde em meio a reuniões estranhas, mas agora só quer saber de voltar para casa. O companheiro a acompanha por um trecho de concreto e algum tempo, só que também ele precisa retornar, ainda que seja para a direção oposta. E então se fez noite, e onde estava seria tomada pelo breu. Os postes de rua não alcançavam aquele ponto de espera, se esgotavam com a sua luz fraca ao longe. Vai até a pista, mira os dois caminhos, as faixas: nem sinal de qualquer ônibus nesta direção.

O frio aperta, a noite aumenta. Decide caminhar até a próxima parada, mais longe do campus, mas na qual enxerga alguma presença. Três homens esperam ao lado de um casal que se abraça. Um deles parece inquieto, cheio de pressa para voltar ao Centro de uma vez. Alguma festa para começar dentro de poucas horas, quem sabe. Ele sugere, barulhento, que adentrem o bairro e encontrem algum táxi. Em três ou quatro, disse, a corrida vai sair por pouco dinheiro. Talvez o aspecto e a ânsia dos gestos tenham assustado os demais. Ninguém aceitou a proposta, e tampouco deram espaço para mais conversa. Logo o homem ansioso estava caminhando pela Avenida, com o passo contrariado e se escondendo do frio entre os casacos.

A espera, é certo, gera as suas desistências: o casal, depois de consultar o relógio repetidamente, cansa de esperar o ônibus amarelo que em algum momento vai irromper no escuro e segue em direção à Casa do Estudante. Agora são poucos os que permanecem ali.

***

Ela caminha evitando as poças que surgiram com a chuva daquela manhã. Ao seu lado, percebeu quase sem querer alguém parecido com quem era há quatro ou cinco anos. O cenário, afinal, também era o mesmo. Na medida em que deixavam a Avenida quase deserta, viam aparecer, mal iluminadas, as pequenas pontes que vencem o córrego e o barranco, e ligam aquela via às ruelas do bairro. Nas manhãs dos dias de semana, por ali passam estudantes com mochilas nas costas, com sono no rosto e alguma ideia imprecisa de como será o dia. Essas pontezinhas desaguam por vezes em pensões – casas de dois pisos e vários quartos, que abrigam gente de tão distintos lados debaixo do mesmo teto.

Não lamenta mais a demora, ao menos encontrou companhia. Passam por uma, duas quadras, e se colocam em frente a mais uma parada: agora estão no caminho de outras linhas, em algum instante o ônibus há de aparecer. Não é tarde, passa pouco das nove. Nos apartamentos do Centro, a função recém deve estar por começar. Em pé num terraço da Rua Dr. Bozano, um rapaz toma vinho e, sozinho, mira o céu: mais um pouco e pensa que a chuva deve voltar. Pouco vê da cidade ao seu redor, os prédios de cor cinza se perdem todos no crepúsculo.

Longe dali, os que caminham trocam perguntas, mas não saem do superficial. Ela descobre que o que anda ao seu lado na noite sem lua está sozinho, a família ficou no interior (aqui também estão no interior, mas falamos assim sobre os que vêm do fundo), os amigos ainda estão por vir. Estava, pouco antes, com dois colegas no campus, mas não vive por lá: divide um apartamento, “antigo, espaçoso, mas com o piso a ponto de afundar”, na Rua General Neto. Nas manhãs livres, caminha a esmo, às vezes por horas, e sempre acaba o percurso numa das galerias do Centro, aquelas onde os velhos tomam café sem se sentar.

***

À noite, os trajetos repetidos de sempre parecem outros. É como se os lugares fossem diferentes, e esta uma nova cidade. Agora, onde havia trânsito e espera há um ônibus que corre e passa pelos terrenos baldios. Eles estavam sentados nos últimos lugares, em que os bancos são mais altos, e a janela escancarava um vento frio. Vento de limpar o rosto e sacudir um pouco a vida. Viam poucas mesas na calçada, um supermercado às escuras, televisões ligadas em cômodos enegrecidos, gente que caminhava por ruas secundárias que, ao longe, se continuassem uma caminhada improvável, encontrariam o pé dos morros.

O ônibus mal precisava frear, seguia sem paradas até se aproximar do Centro. Separados por poucos bancos, estavam homens mais velhos que retornavam de uma demorada jornada de trabalho, mulheres com crianças de colo, gente à espera de um trago e três ou quatro pessoas que pouco sabiam sobre os motivos que as levaram a esperar tanto tempo por aquele ônibus, a pagar uma passagem cara e fazer este trajeto de vinte e poucos minutos até a Rua Riachuelo. Sequer sabiam para onde dar o primeiro passo depois que descessem dali, mas a questão é que tinha se tornado impossível continuar onde estavam.

Já na rua, o vento parece ganhar força com a descida do asfalto e espalha um frio intenso. Dentro do ônibus estava um pouco melhor. Ela avisa que a sua casa fica a alguns minutos dali, pouco depois de passar a Rio Branco. Mas que pode caminhar por mais tempo, não tem compromisso algum e a semana, afinal, já havia acabado. Ele comenta que há tempos vê as semanas passarem sem maiores acontecimentos, e que caminhar pela cidade, apesar do vento, pode ser bom para a cabeça. ‘Eu preciso estar na rua para que algo me aconteça’, imagino que tenha tido vontade de dizer.

Publicado na revista o Viés.

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