Calle Soriano

Jogo de damas

Posted in Sem categoria by iurimuller on 14 de julho de 2016

É uma noite de inverno e dois homens jogam damas na Praça da Alfândega. A iluminação pública é insuficiente e está claro que pouco devem enxergar as peças. Ao redor, as bancas de artesanato, roupa, panos, redes, terminam de fechar. Penso no que farão os dois jogadores quando terminarem a enevoada partida. O primeiro homem: a) leva, na mochila que carrega nas costas, uma muda de roupa quente e uns artigos a mais, próprios para o compromisso a que planeja chegar na sequência. Para tanto, depois de ganhar ou de perder, de guardar numa caixinha as peças brancas, deve rumar ao Mercado Público e então ao subterrâneo dos trens. Primeiro, irá trocar as vestes no banheiro da estação, sempre na terceira porta. Depois, devidamente pilchado, precisa de um vagão que o deixe em Esteio, onde acontece, por volta das dez, um baile de música gaúcha, muito perto da rodovia; b) a partida termina e ele fica, na verdade, algo desorientado na Alfândega vazia. Resolve atravessar a praça, de um extremo a outro, movido por pensamentos estranhos. Agora está na breve Avenida Sepúlveda, em frente ao cais, e sabe que mais um passo não poderá dar, ainda mais naquela hora, com os portões fechados. Olha para trás, procura em meio às árvores a sombra do companheiro de damas. Quem sabe está em tempo de outra partida, a última, ele pensa, pelo menos até que uma ideia melhor de como prosseguir com a noite o assalte. Mas não vê movimento algum, o lugar, com exceção dos que dormem encolhidos nos bancos, está mesmo deserto; c) encerra o jogo com pressa, pensa mal as últimas rodadas, entrega as peças sem parar. É observado com irritação pelo companheiro de damas, que não se contenta com uma vitória tão fácil. É que havia olhado para o relógio há pouco, e crê que está no horário limite para entrar num dos inferninhos que costeiam o largo Glênio Peres, se é que desta vez terá coragem de passar pelo letreiro luminoso. O segundo homem: a) percebe que as suas peças estão mal distribuídas pelo tabuleiro e que a vitória, neste quarto desafio do dia (antes, havia vencido um engraxate da Borges com alguma velocidade, e perdido duas vezes para o garçom de uma galeteria da Rua da Praia), está mui distante. Ter de correr atrás do resultado o perturba, não sabe, nunca soube, mover bem as peças quando se sente pressionado. Consola-o a sabedoria de que ainda lhe cabem uns doze anos de vida e centenas de partidas na Praça da Alfândega e no Parque Marinha do Brasil. Com sorte, ainda fará um par de viagens a São Borja, onde o aguarda, ele crê, um antigo amor; b) mira o tabuleiro: tem mais cinco peças, o adversário conta com seis, irá ganhar ou perder em questão de minutos, e isso não importa mais. O que precisa: sair dali a tempo de pegar o seu ônibus na Salgado Filho, descer na esquina de sempre, caminhar por quatro quadras, subir três andares de escada, ligar a estufa movida a gás na sala, encontrar o controle da televisão, apontar firme para o aparelho e buscar um cobertor para, enfim, entregar-se ao que Grêmio e Sport Recife podem lhe oferecer num estádio distante.

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