Calle Soriano

Respiración artificial, de Ricardo Piglia

Posted in Sem categoria by iurimuller on 22 de junho de 2017

27247dda9c47ff7ffe2a25b57e74aac9e696e423Publicado em 1980, numa época em que, de acordo com a crítica argentina, a literatura do país atravessava dias de certo torpor, Respiración artificial poderia ter sido muitos: de suas páginas, que não deixam de ser breves, saltam três, quatro linhas narrativas suficientemente densas e desenvolvidas como que para anunciar um romance futuro; romance de que Piglia preferiu desviar e assim construir, de modo entrecortado, um livro que em algum momento se aproxima da novela policial, em outro, do discurso da história, e ainda do debate de ideias, de uma reflexão crítica sobre os autores e a literatura argentina, sobre os rasgos de dependência e dívida ainda nítidos no país.

Em primeiro plano, está a história de uma busca: a busca por um tio que, com poucos gestos, rompeu por completo com as relações familiares e construiu, aparentemente em completa solidão, uma nova trajetória, da qual pouco se sabe, mas que se acredita próxima dos livros, do ensino da História, e distante da cidade natal. Marcelo Maggi, o tio, passa a viver em Concordia, Entre Ríos, zona de fronteira com o Uruguai, e acaba restabelecendo o contato com Emilio Renzi, o perene alter ego de Piglia, quando Renzi publica o seu primeiro livro de ficção – texto em que faz referência, mesmo que de forma discreta, à história de Maggi, homem que, contam as versões, roubou o dinheiro da ex-mulher, ela a herdeira de uma longa e rica família que remonta aos começos da história nacional.

Dizer que Emilio Renzi é o narrador de Respiración artificial pode ser, ao mesmo tempo, acertada hipótese e insuficiente apontamento. Isso porque, principalmente na primeira parte do livro (“Si yo mismo fuera el invierno sombrío”), o romance é formado por uma miríade de discursos, cartas, solilóquios, argumentações paranoicas, estranhas recordações e um par de desencontros, sempre em muitas vozes. Está a obsessão de Marcelo Maggi por Enrique Ossorio, homem do século XIX que trabalhou ao lado de Rosas e, em prolongada ambiguidade, traiu o ditador e perambulou pelo mundo a sentir na pele as agruras do exílio, do tempo e da loucura, e a registrar as experiências e dificuldade de dar sentido ao que vivia em um diário; estão as cartas interceptadas por um personagem de nome Arocena, capazes de tocar, por vezes, o conteúdo dos demais fragmentos. E está, principalmente, o ímpeto de Emilio Renzi, que decide reencontrar o tio e se coloca em conversação epistolar com Maggi, até o momento em que empreende viagem a Entre Ríos.

A segunda parte do romance (“Descartes”) me interessa mais: trata-se de um longo relato em que poucos acontecimentos se encadeiam no tempo presente da narrativa, mas, através de um diálogo por vezes demoníaco entre Renzi e alguns dos habitantes da cidade fronteiriça, frequentadores, todos eles, do Club Social de Concordia, os temas caros a Ricardo Piglia se desenvolvem sem travas, censuras ou contenções. No Club Social, por exemplo, típico espaço provinciano em que se pode beber sem que ninguém estranhe demasiado a solidão e o alcoolismo, como explicou o enxadrista e filósofo polonês Tardewski, ele mesmo um membro assíduo do lugar, Renzi discutirá pormenorizadamente sobre o estado atual da literatura argentina, suas bases e tensões permanentes.

A mais rica das conversas se dá com Marconi, jovem entrerriano que trabalha no jornal local e, de tempo em tempo, publica sonetos na mesma publicação. Renzi, também ele um escritor, vem de Buenos Aires, e na Capital havia publicado o seu primeiro livro; Marconi vive no interior do país, em meio à rotina da província, e afirma que escreve poemas e não deixa de ler a Jorge Luis Borges. A discussão entre ambos, irônica durante bom trecho, acalorada em outros instantes, alcança, com humor, uma tensão mais ampla: a da vigência entre duas miradas distintas, de dois paradigmas tão antigos como ainda vivos, de um histórico de atração e repulsa entre Buenos Aires e o interior do país, entre um país unitário e uma ideia federalista de nação. Marconi ri dos modismos de Buenos Aires, e na linha seguinte admite que, em dois anos, a ideia, seja lá qual for, chegará com força na província. Renzi, por sua vez, caminha com alguma compaixão pelo panorama talvez desolador da fria noite do litoral do seu país.

Renzi e Marconi divergem sobre boa parte de temas e autores, mas principalmente sobre Roberto Arlt. Para Renzi (e para Piglia, como se pode ler repetidamente na obra ensaística do autor), Arlt é um escritor que merece atenção e mesmo uma defesa, visto que seria o único entre os autores do século XX a intervir detidamente na escrita produzida em território argentino, o único a tocar mesmo a estrutura da língua, alguém que, como autor, pôde jogar para dentro do romance o fragmento, a tradução, a colagem, os recursos que estiveram afastados da alta literatura até então. Para Marconi, Roberto Arlt é muitas vezes intragável, um autor de quem Borges não conseguiria ler duas páginas, um escritor que, mais do que nada, escreve mal, coisa que qualquer leitor, mesmo que disposto a reconhecer seus méritos, não poderia refutar.

Sobre a relação de Piglia com a literatura de Arlt, são válidas as linhas de Roberto Bolaño, afiadas, como sempre, e presentes no texto “Derivas de la pesada” (publicado em Entre paréntesis): “lo que pasa es que se me hace difícil soportar el desvarío – un desvarío gangsteril, de la pesada – que Piglia teje alrededor de Arlt, probablemente el único inocente em este asunto. No puede estar, de ninguna manera, a favor de los malos traductores del ruso (…), y no puedo aceptar el plagio como una de las bellas artes. La literatura de Arlt, considerada como armario o subterráneo, está bien. Considerada como salón de la casa es una broma macabra. Considerada como cocina, nos promete el envenenamiento. Considerada como lavabo nos acabará produciendo sarna. Considerada como biblioteca es una garantía de la destrucción de la literatura”. E nesta eu estou com Marconi e Bolaño, e não com Piglia e não com o ainda jovem Renzi.

É em Respiración artificial, a propósito, que Piglia mais se aproxima de Roberto Bolaño (não em seus temas e escolhas atmosféricas, pois isso se daria, no caso, com Plata quemada, mas no embricamento dos discursos, na ávida discussão de ideias, no debate que, por vezes, tende ao caos, e no minuto seguinte, será capaz de iluminar a página inteira). Tal aproximação parece se dar, creio, com maior intensidade nas páginas finais do livro, em que Emilio Renzi se encontra a sós com Tardewski, o melhor amigo de Marcelo Maggi em Concordia, e o polonês discorre largamente sobre as relações possíveis entre Kafka e Hitler, o rigor profético e melancólico das páginas do escritor tcheco, a sua (de Tardewski) busca inconsciente pelo fracasso – de aluno de Wittgenstein em Cambridge a professor particular no litoral argentino –, a ausência permanente de Marcelo Maggi, o tio que sempre escapa, do início ao final, imune aos sobrinhos, aos detetives, às buscas sempre vãs.

Romance estranho, de pensamentos e de afãs desesperados, este belíssimo Respiración artificial, livro que, me parece, agradaria a Bolaño e mesmo a Borges; a Marconi também, mas, coisa estranha, creio que não a Arlt.

Cinco poemas de Roberto Bolaño

Posted in Sem categoria by iurimuller on 5 de maio de 2014

(em tradução livre)

1.

Dentro de mil anos não ficará nada
do que foi escrito neste século.
Serão lidas frases soltas, impressões
de mulheres perdidas,
fragmentos de crianças imóveis,
teus olhos lentos e verdes
simplesmente não existirão.
Será como a Antologia Grega,
ainda mais distante,
como uma praia no inverno,
para outro assombro e outra indiferença.

2. As perucas de Barcelona

Só quero escrever sobre as mulheres
das pensões do Distrito 5°
de uma maneira real e amável e honesta
para que quando minha mãe me leia
diga assim é a realidade
e eu possa rir enfim
e abrir as janelas
e deixar entrar as perucas
as cores.

3. Poeta chinês em Barcelona

Um poeta chinês pensa ao redor
de uma palavra sem chegar a tocá-la
sem chegar a olhá-la, sem
chegar a representá-la.
Atrás do poeta há montanhas
amarelas e secas varridas pelo
vento,
chuvas ocasionais,
restaurantes baratos,
nuvens brancas que se fragmentam.

4. Teu coração distante

Não me sinto seguro
Em nenhuma parte.
A aventura não termina.
Teus olhos briham em todos os lugares.
Não me sinto seguro
Nas palavras
Nem no dinheiro
Nem nos espelhos.
A aventura não termina jamais
E teus olhos me buscam.

5.

Agora passeias sozinho pelo porto
de Barcelona.
Fumas um cigarro negro e por
um momento achas que seria bom
que chovesse.
Dinheiro não te concedem os deuses
mas sim caprichos estranhos:
Olha para cima:
está chovendo.

Ambições minúsculas

Posted in Cotidiano by iurimuller on 31 de julho de 2013
Foto: Iuri Müller

Foto: Iuri Müller

(Este post é inspirado neste outro aqui, do Milton Ribeiro. Em alguns pontos – que não são nada mais do que expectativas – concordamos quase que literalmente.)

Vivo em Porto Alegre há poucos meses, desde abril. Passei apenas quinze dias sem trabalhar, e naquela quinzena houve tempo de sobra para o ócio – ainda que fosse o ócio nervoso da incerteza na nova cidade, mas doce porque recém havia retornado de uma viagem interessante. Nos meses seguintes, houve períodos em que trabalhei menos e que trabalhei mais – e houve junho, no qual apenas trabalhei.

Desde então, é claro que de alguma maneira encontrei algum tempo para ver filmes no Guion, comprar livros na Rua Uruguai e até ler uns quantos deles. Houve, até, chance de se viajar para cidades próximas, visitar amigos e gente querida. Mas principalmente nas últimas semanas tem me saltado uma vontade enorme de arranjar espaço para uma porção de coisas, a maior parte delas aparentemente possíveis de serem levadas a cabo – o que aumenta a (ainda) leve agonia de não as verem acontecendo.

A primeira ambição é estritamente literária. Ler o romance incompleto de Bolaño, iniciado em março e nunca terminado; ler as últimas duas partes de Sobre heróis e tumbas, de Sábato; finalizar a longa reportagem que o Juremir Machado tratou de escrever sobre o Jango. Até aí, nada que pareça um devaneio: mas nos últimos dias me caíram nas mãos dois tomos de Horacio Verbitsky sobre a história política da Igreja Católica na Argentina, no mesmo momento em que a nova edição de Os miseráveis passa a me dirigir olhares mais ostensivos. Infelizmente ainda resisto.

A segunda ambição é quase módica. Gostaria de abandonar ao menos uma das espécies de pressa que vive em mim – a indiscutivelmente desnecessária. Talvez seja um dos ônus mais assustadores do jornalismo, inclusive: preocupar-se quase em tempo integral, esteja ou não a matéria atrasada, permanecer diariamente insatisfeito, mesmo que a semana tenha sido produtiva e os textos planejados tenham sido escritos. A ideia é ignorar a rigidez do horário de almoço e passar mais vinte e cinco minutos no café de sempre, ou deixar dois ônibus passarem enquanto, na parada, permaneço com um livro na mão. Nenhum grande pedido, nenhuma remota ilusão: espero.

A terceira ambição se refere ao cotidiano em Porto Alegre. É preciso ver mais o Grêmio na Arena do Humaitá, mesmo que o estádio não tenha me convencido de verdade; deixar de comprar comida no mercado e voltar a cozinhar em casa – ou ajudar a cozinhar em casa, para ser sincero e, ao mesmo tempo, grato pela companhia de todos os dias. Neste instante da listagem, incluiria um dos anseios mais complicados: encontrar tempo e condições para escrever com mais frequência, para além da reportagem e da notícia. Não pode ser tão difícil assim.

Nenhuma das pretensões remete a transformações devastadoras, o que talvez seja o resultado dos dias bonitos que vivo por aqui. Eu aceitaria inclusive centralizar em alguns pontos, abandonar duas ou três ambições: Jango, Bolaño e Verbitsky em agosto, Os miseráveis para depois; mais vezes com o Grêmio na Arena, mas a pressa ainda zumbindo no ouvido, como agora. Ao menos eu não peço caravanas imediatas para Lisboa, como o Milton Ribeiro. Acho que posso ser atendido.

***

Abaixo, a razão pela qual é preciso investir no romance incompleto de Roberto Bolaño. Trecho do capítulo cinco:

“Yo, pensó Amalfitano, que fui un niño inventivo, cariñoso y alegre, el más listo de mi preparatoria perdida en los lodazales y el más valiente de mi liceo perdido entre las montañas y la bruma, yo que fui el más cobarde de los adolescentes y que durante las tardes de combate con honda me dediqué a leer y a soñar reclinado sobre los mapas de mi libro de geografía, yo que aprendí a bailar el rock and roll y el twist, el bolero y el tango, pero no la cueca, aunque en más de una ocasión me lancé al centro de la ramada, pañuelo en riestre y jaleado por mi propia alma pues no tuve amigos en esa hora patria sino más bien enemigos, huasos puristas escandalizados por mi cueca con taconeo, la heterodoxia gratuita y suicida, yo que dormí las borracheras bajo un árbol y que conocí los ojos desamparados de la Carmencita Martínez, yo que nadé una tarde de tormenta en Las Ventanas, yo que preparaba el mejor café de mi departamento compartido con otros estudiantes en el centro de Santiago y mis compañeros, sureños como yo, me decían qué bueno tu café, Óscar, qué bueno tu cafecito, aunque un poco fuerte si hemos de ser francos, demasiado italiano si hemos de ser francos, yo que oí el canto de los Huevones Integrales, una y otra vez, en las micros y en los restaurantes, como si me hubiera vuelto loco, como si la Naturaleza, afinándome el oído, hubiera querido advertirme de algo tremendo e invisible, yo que entré en el Partido Comunista y en la Asociación de Estudiantes Progresistas, yo que escribí panfletos y leí El Capital, yo que amé y me casé con Edith Lieberman, la mujer más hermosa y cariñosa del Hemisferio Sur, yo que no supe que Edith Lieberman se merecía todo, el sol y la luna y mil besos y luego otros mil y mil más, yo que tomé copas con Jorge Tellier y que hablé de psicanálisis con Enrique Lihn, yo que fui expulsado del Partido y que seguí creyendo en la lucha de clases y en la lucha por la Revolución Americana, yo que fui profesor de literatura en la Universidad de Chile, yo que traduje a John Donne y piezas de Ben Jonson y a Spenser y a Henry Howard, yo que firmé proclamas y cartas de grupos izquierdistas, yo que creí en el cambio, algo que limpiara un poco tanta miseria y tanta abyección (sin saber todavía, inocente, lo que era la miseria y la abyección), yo que fui un sentimental y que en el fondo sólo quería pasear por avenidas luminosas con Edith Lieberman, una y otra vez, sintiendo su cálida mano en mi mano, tranquilos, amándonos, mientras a nuestras espaldas crecía la tempestad y el huracán y los terremotos del porvenir, yo que predije la caída de Allende y que sin embargo no tomé ninguna medida al respecto, yo que fui detenido y llevado a interrogar con los ojos vendados y que soporté la tortura cuando otros más fuertes se derrumbaron (…)”

Los sinsabores del verdadero policía. Anagrama, 2011.