Calle Soriano

Zugzwang

Posted in Jornalismo, Literatura by iurimuller on 3 de abril de 2014
Walsh joga com as brancas em La Plata.

Walsh joga com as brancas em La Plata.

Rodolfo Walsh (1927-1977) estava num café de La Plata, às voltas com um tabuleiro de xadrez e com copos de cerveja, quando ouviu falar pela primeira vez sobre o caso dos fuzilamentos clandestinos que narraria depois em “Operação Massacre”. No prólogo definitivo deste livro, reescrito algumas vezes, Walsh escreve que a partir deste momento deixara os bispos e as torres de lado para aventurar-se na “vida real”, e também no relato de não-ficção. Depois de “Operação Massacre”, hoje tido como um dos mais bem acabados livros do gênero na Argentina e no continente, o escritor publicaria, na mesma linha de investigação, ao menos outras duas obras. Se é certo que com o jornalismo Rodolfo Walsh construiu outra consciência política (combativa e indignada, à serviço dos trabalhadores organizados e dos que não encontravam espaço na Justiça burguesa), não se pode dizer que depois daquela noite de La Plata, em que o xeque-mate e o gole foram interrompidos bruscamente, Walsh tenha abandonado o jogo de xadrez e o que ele representa para a sua literatura – tão ou mais poderosa do que puderam ser os seus textos políticos e jornalísticos.

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Publicado há poucas semanas no Brasil, o livro “A máquina do bem e do mal” finaliza a tradução dos contos de Rodolfo Walsh para a língua portuguesa. Antes, a Editora 34 já havia organizado “Essa mulher e outros contos” e “Variações em vermelho”, também a partir dos contos do escritor argentino. Em “Essa mulher…” há ao menos duas peças-chave para a literatura de Walsh: o conto que dá nome ao livro, tido por alguns críticos como “um dos melhores” da literatura argentina, e o relato intitulado “Nota de rodapé”, na qual há um deslumbramento simultâneo por parte do leitor quanto à força da narrativa e a ruptura na forma com que se constrói o texto. A publicação seguinte, “Variações em vermelho”, composto maioritariamente por narrativas policiais, gênero que alcançou Walsh como ávido leitor e tradutor do inglês, conta com “As aventuras das provas de prelo” – conto à altura dos melhores policiais, com uma indefectível cor bonaerense.

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Neste “A máquina do bem e do mal”, seis dos contos do volume aparecem sob o título prévio de “Os casos do delegado Laurenzi”. Como nas “Variações…”, outra vez está presente o personagem Daniel Hernández, que decifra alguns dos enigmas a partir da experiência e do raciocínio típicos do revisor de textos. Ou do jogador de xadrez. Laurenzi e Hernández se encontram repetidamente no Café Rivadavia, às vezes durante longas madrugadas, em outras ocasiões pouco antes do almoço. Ali, tomam café (o delegado prefere a bagaceira) e devoram peões aos montes. Entre uma jogada e outra, um gole e outro, o delegado irá contar a Hernández uma de suas tantas histórias – ele, afinal, esteve à frente das mais obscuras delegacias das províncias argentinas, e dos extremos Norte e Sul surgem histórias sobre profetas, charlatões e criminosos impensáveis. A narração de Laurenzi é, de tempos em tempos, entrecortada pelas dúvidas de um Hernández bem menos atento do que no livro anterior. Agora, a lucidez e o raciocínio cabem melhor ao delegado.

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O enxadrista, mais do que calcular habilmente cada um dos seus movimentos, atenta para outra condição, igualmente fatal: prever, ou acreditar que poderá imaginar, também as ações de seu adversário. Assim ele irá se movimentar pelo tabuleiro, atento às suas peças e ao jogo de quem está sentado à sua frente. Rodolfo Walsh talvez tenha jogado xadrez em cada um dos seus melhores livros. Narrativas perfeitas de não-ficção como “Operação Massacre” e “Quién mató a Rosendo?” se ancoram em pistas, no raciocínio, no que os poderosos buscam esconder para que a história não ganhe outra versão que não a que convém ao imobilismo. No xadrez, a condição na qual um dos jogadores não poderá escapar da derrota seja qual for o seu próximo movimento é chamada de “zugzwang”, palavra que também dá nome a um dos contos de “A máquina…”. Walsh (ou Laurenzi) apresenta um jogo de xadrez por correspondência (chamado de xadrez epistolar no Brasil) mantido há meses por um homem calado que frequenta os cafés bonaerenses e um inglês que, no passado, também esteve na Argentina. Mais do que as indicações do próximo movimento, as cartas também revelam algo sobre a vida de cada um – inclusive laços improváveis e violentos entre os dois. É mais um dos casos em que o leitor, à frente dos escritos de Walsh, também se vê encurralado: e então será preciso permanecer no jogo.

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