Calle Soriano

Sobre “A ocasião”, de Saer

Posted in Sem categoria by iurimuller on 12 de setembro de 2017

Busquei a edição brasileira de A ocasião, de Juan José Saer, por um estranho e certamente contraditório motivo: voltar a ler algo em português em meio à maratona de leituras hispânicas, boa parte dela, justamente, feita de textos de e sobre Saer. Foi a forma encontrada para, ao mesmo tempo, voltar ao meu idioma e não me afastar do texto do autor neste momento. A tradução de Paulina Wacht e de Ari Roitman para a Companhia das Letras foi editada em 2005 no Brasil, e A ocasião aparece ao lado de A pesquisa, Ninguém nada nunca, O enteado e O Grande entre os livros de Saer que a editora publicou. O estranho é que o autor não consta mais no catálogo da editora em seu site, e não sei dizer se isso se deve a um critério editorial, a algum erro ou desatenção ou se a editora perdeu os direitos de publicação do escritor no país.

A ocasião (1988, no original) é um texto-chave para entender o processo de escritura de Saer: no breve romance, estão presentes alguns dos elementos reiterados da sua narração, certas obsessões temáticas e um trabalho particular de linguagem. Se a frase e o parágrafo por vezes são esticados, enovelados e reencaixados ao infinito em textos como Ninguém nada nunca e Glosa (sem tradução para o português), em A ocasião o que se vê é um Saer digamos que mais veloz: aqui, a linguagem por vezes se ocupa mais das pretensões do enredo do que do seu próprio recolhimento, e as diversas modulações no tempo da narrativa também estimulam o emprego desta quase velocidade.

Espécie de pré-história dos textos que se ocuparão do território de Santa Fé em seus romances, o texto se afasta da temporalidade de personagens conhecidos da constelação literária do autor, como Tomatis, Gato e Pichón Garay e Washington Noriega, por exemplo, e se infiltra na relação entre Bianco, um ocultista europeu que, perseguido pelos positivistas de Paris, se exila na Argentina do final do século XIX, e Gina, uma jovem santafesina que logo se aproxima de Bianco. Entre Gina e Bianco, pairam umas quantas dúvidas – indefinições persistentes, angustiantes (ao menos para Bianco, visto que Gina parece, com o passar das páginas, se encastelar em um estoicismo inquebrável e silencioso) e que acabam por se tornar labirínticas.

O ponto de inflexão do texto, rapidamente perceberá o leitor, acontece no momento em que, depois de cavalgar sob chuva, entre o final de uma tarde e o começo da noite, da sua cabana no campo em direção à casa na cidade, Bianco encontra Gina em uma ocasião ambígua com o seu único amigo no país, o doutor Garay López – médico em Buenos Aires, herdeiro de uma das tradicionais famílias da região e sempre disposto ao galanteio inconsequente, às caminhadas com Bianco por este novo lugar e à conversação sobre o que separa e distingue o espírito da matéria; discussão que, para o europeu, custou a viagem para além-mar, o desterro e quem sabe o arrefecimento dos seus poderes.

Desde então, a mesma cena retorna, uma e outra vez, nunca com as mesmas cores, sempre mais sórdida, em uma escalada enlouquecedora, à memória de Bianco, que não pode mais viver em paz sem descobrir se houve de fato algo entre a sua mulher e o amigo: “Sentada numa poltrona, com o pescoço apoiado no encosto, a cabeça um pouco jogada para trás, as pernas esticadas e os calcanhares apoiados em outra poltrona, os sapatos de cetim verde jogados ao acaso pelo chão, Gina, de olhos semicerrados e expressão de prazer intenso e, para Bianco, um tanto equívoco, está dando uma profunda sugada num grosso charuto que sustenta entre o indicador e o dedo médio da mão direita. Em outra poltrona, com um cálice de conhaque na mão, um pouco inclinado na direção dela, Garay López lhe diz alguma coisa com expressão malévola, e Bianco não consegue saber se a expressão de prazer de Gina vem do charuto ou das palavras de Garay López que ela, apesar dos olhos semicerrados, parece ouvir com atenção sonhadora” (p. 29-30).

É Garay López o personagem que aproxima, no interior da obra de Saer, os textos que se situam antes, no tempo da narrativa, com os contos e romances contemporâneos do cosmos santafesino. A família Garay, tida como uma das fundadoras da cidade, desta zona geográfica na qual mergulha Saer, aparece de modo onipresente em sua obra: para além dos irmãos Gato e Pichón, protagonistas ou personagens secundários em distintos textos, também há espaço para o Garay López, o melancólico juiz de Cicatrices e, em A ocasião para o personagem homônimo, central para o desenvolvimento da narrativa.

A reiteração dos nomes próprios e dos sobrenomes e o vínculo com romances e contos anteriores coabitam este espaço de repetições com a incidência dos fenômenos naturais, do calor, das estações indefinidas, da chegada de tormentosas chuvas no enredo: como em outros textos de Saer, o clima incide bruscamente na narrativa, move algumas das ações dos personagens, desloca algumas convicções. Afugenta ou atrai mosquitos, atiça o ânimo dos cavalos, provoca cenas ambíguas entre seres humanos, espalha ou impede o avançar da peste.

Luz em agosto, de William Faulkner (em conversação com Juan José Saer)

Posted in Sem categoria by iurimuller on 21 de fevereiro de 2017

luz-de-agosto-faulknerBusquei Faulkner depois de ler Juan José Saer: talvez tenha sido um caminho inverso, mesmo para os leitores latino-americanos. Um caminho ao mesmo tempo ao revés (um caminho de volta, talvez) como também inevitável: após ler Saer com algum afinco, torna-se necessário retomar as origens de pelo menos parte – imagino que parte indispensável – do projeto literário que o escritor santafesino levou a cabo. Isso foi algo que me pareceu claro após ler Cicatrices, Glosa e os ensaios teóricos de Saer – ensaios que, em certas oportunidades, como acontece com os que estão reunidos em El concepto de ficción, ocupam-se nomeadamente de Faulkner.

De modo que, neste caminho de retorno, li neste início de ano, neste verão chuvoso no sul do mundo, o Luz em agosto (1932), de Faulkner, na edição da Cosac Naify. Antes, havia lido, não sem temores, não sem interrupções bruscas, O intruso, novela que não me pareceu a melhor porta de entrada para a obra em questão. Com Luz em agosto o processo foi distinto: não um caminho simples, mas quem sabe, sim, o início de algum entendimento do que acontece aqui sobre o como se narra, quantas vezes se narra, qual a direção do texto e como alguns dos artifícios vão alcançar, apaixonadamente, autores como Juan José Saer e Juan Carlos Onetti – para mencionar dois dos escritores do Rio da Prata que devem ao norte-americano traços que do que levaram adiante em posteriores contos e romances.

Em Faulkner, além da “perfeita página esculpida”, como li alguém dizer, está o recurso da repetição da narração para dar conta de um mesmo (e ao mesmo tempo algo deslocado, a cada vez) acontecimento. No caso de Luz em agosto, a linearidade se quebra muitíssimas vezes, e há nítida sobreposição temporal para dar conta, desde a intenção do autor, da travessia de Lena Grove e de Joe Christmas pelo sul dos Estados Unidos: assim, um incêndio, uma fuga, uma conversa ou um assassinato podem ser contatos repetidas vezes, de distintos ângulos, sem, no entanto, oferecer a ilusão de que a multiplicidade das miradas pode oferecer qualquer totalidade ou exaustão de um momento ou sucesso. Há algo desta tentativa (bem como a suposta banalidade de alguns gestos e certa presença demoníaca na narrativa) também em Cicatrices (1969), de Saer.

O que também ocorre, de forma radicalizada e perene, no projeto de Faulkner, é a tantas vezes mencionada construção geográfica que, por momentos, confunde o mapa literário com o plano real do sul dos Estados Unidos. E esta ambientação no ficcional condado de Yoknapatawpha (situado, a partir da caneta do escritor, a noroeste do Mississippi) encontrará semelhança, tempos depois, na zona geográfica em que se ergue, pouco a pouco, a ficção de Saer – a nunca mencionada Santa Fé se estende em seus romances, abarca cidades da região e forma um mesmo núcleo espacial, entre a ficção e os mapas correntes, por onde se movimentarão personagens que igualmente se repetem. Quanto à geografia, pode-se dizer que também em Onetti e na sua Santa María ficcional está a semente de Faulkner, ou ao menos seu desejo e seu impulso.

Por fim, durante toda a leitura de Luz em agosto esteve presente comigo a questão da nomeação no romance: para além do nome de um dos personagens principais (Joe Christmas, cuja correspondência nominal é evidente), o problema do nome encerra outros conflitos, como a busca de Lena pelo homem que a engravidou e que não voltou a encontrar, cujo nome, para ela, seria Lucas Burch, ainda que na nova cidade tenha se apresentado como Joe Brown, e nessa mesma procura Lena acabe por se encontrar com um outro homem, Byron Bunch, que a acompanhará com resignação apaixonada. Mesmo no gesto de nomear há, em Luz em agosto, perda e aproximação, reinvenção e engano.

Hombre en la orilla, de Miguel Briante

Posted in Sem categoria by iurimuller on 21 de setembro de 2016
A edição de 2013.

A edição de 2013.

Atento, há meses, para um aspecto da obra de Juan José Saer: a rede que se forma, em seus romances e contos, com acontecimentos e personagens que se tocam, de um texto para outro, e formam, pouco a pouco, por vezes crescendo e em outras retrocedendo, um conjunto de associações (de um enorme intertexto interno) nada linear. De outro modo, em diferente proporção, e com, mais do que nada, distinta proposta narrativa, há algo assim na literatura do também argentino Miguel Briante, como provam os quatro textos deste Hombre en la orilla, publicado pela primeira vez no ano de 1968.

Desconhecia os livros e mesmo o nome de Briante, nascido em General Belgrano, Província de Buenos Aires, em 1944, e morto precocemente na década de 1990, até o momento em que me deparei com um conto: “Fin de Iglesias”, se chama o texto, escolhido numa oficina literária (de José María Brindisi) que trabalhava o gênero conto na Argentina e mais além. Pude notar, em “Fin de Iglesias”, o esforço literário em levar a oralidade de um povoado de província para a ficção, o enredo que se firma em episódios locais, e a crença, que persiste também no livro em questão, de que os problemas e os conflitos da literatura podem ser encontrados, quem sabe todos eles, nas teias algo minúsculas e ensimesmadas de uma pequena cidade do sul do mundo. As linhas do conto, como em Saer, saltam para o que se vê nos relatos e na novela de Hombre en la orilla.

É certo que os quatro textos do volume podem ser lidos de maneira independente, com visível autonomia: os silêncios e espaços em branco são marcas de um estilo e de uma proposta, e se acabam preenchidos depois, em transposições sutis, como acontece com Briante, isso em nada diminui a força de unidade de cada relato. Pode-se ler “A lo largo de esta calle que da al río”, o mais longo dos textos, que se aproxima de uma novela, sem retornar aos contos anteriores, mas a leitura completa do volume (e de outras peças mais da obra de Miguel Briante, como já posso crer) irá tocar com algo novo as lacunas e levar outro gosto à página. Como Saer, e talvez a semelhança não se estenda mais do que a este aspecto, há, aqui, a construção de uma obra pensada em conjunto, em lenta progressão, e que marca, em um espaço narrativo (em Briante, el pueblo, que em algum momento é anunciado como General Belgrano, a cidade natal do escritor), as idas e vindas de um mesmo núcleo de personagens e acontecimentos, dos verossímeis deslocamentos e experiências de um povoado em que quase todos se conhecem e o que é estranho (os forasteiros, os que retornam, os malditos e os que vivem às margens, nas barrancas) salta aos olhos com força e agilidade.

O desenhar deste espaço se torna mais firme, e é para tanto que serve a repetição, conforme Hombre en la orilla avança. No primeiro texto, “Habrá que matar a los perros”, aparecem algumas referências (a lugares, a famílias, a sobrenomes) que retornarão na sequência, ao mesmo tempo em que uma narração em primeira pessoa, marcadamente provinciana, relata a decadência de uma estância local. Em “Hombre en la orilla” e “La Vasca” a perspectiva é a do homem jovem que retorna ao povoado (no segundo conto, de Buenos Aires, onde parte para viver e estudar), e que mantém no olhar entre nostálgico e piedoso o tom de quem oscila entre ser dali e ser estrangeiro, de manter os vínculos e as conversações com os amigos de infância, que agora só pode encontrar nas férias, e observar o que, apesar da passagem do tempo, permanece inalterado; em outro momento, o narrador de Briante lembra que, em povoados como este, o correr do calendário não significa necessariamente a transformação ou mesmo o acontecimento.

Penso que é em “A lo largo de esta calle que da al río” que os artifícios de Briante chegam mais longe: no relato de quase oitenta  páginas, o escritor pode se aproximar de alguns dos seres de General Belgrano (La Baguala e sua filha Elena Fuentes, que vivem num rancho à beira do rio e atordoam com sua força e pobreza; o louco, talvez bruxo, talvez vidente; o silencioso homem que chega do sul e espera por um momento impreciso para agir; as tradicionais famílias da localidade que acabam ridicularizadas numa noite de carnaval), saltar do presente do cidade para um passado anterior aos personagens e então a momentos pontuais em que algo, uma frase, um confronto, atrai a atenção de todos e destrói, por um par de dias, ao menos, a modorra do povoado – porque em lugares assim o tempo e a poeira, e quem sabe o cansaço, podem mais do que o ruído, e logo recolocam as antigas peças no lugar em que costumavam estar.

Hombre en la orilla, de Miguel Briante. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2013.

“O Grande”, de Juan José Saer

Posted in Literatura by iurimuller on 7 de janeiro de 2015
epígrafes de "O Grande"

epígrafes de “O Grande”

São eles próprios mundo, realidade, destinados a segregar, em cada um de seus atos, mais mundo, mais realidade, são, mais ainda, o próprio presente, que à medida que se desloca vai criando mais presente, e ao mesmo tempo, sem perceber, afundando-nos no passado” (fragmento da página 246).

Publicado na Argentina, traduzido para idiomas estrangeiros, à disposição nas livrarias de Buenos Aires e de São Paulo, seria um erro ou uma ilusão afirmar que “O Grande”, de Juan José Saer, é um romance que não se completou. Ou ao menos uma ilusão parcial. La Gran, no título original, é o último livro do escritor santafesino e o mais longo dos seus romances; escrito na França, como ocorreu com grande parte da sua obra, o livro acompanhou Saer até as últimas semanas de vida, e algumas das páginas foram rascunhadas e lidas num hospital francês. Saer reconstitui a história de uma vida e de um regresso em sete dias de semana; o último deles, a segunda-feira, no entanto, não pôde passar da primeira frase: “Com a chuva chegou o outono e, com o outono, o tempo do vinho”. Saer morreria pouco depois, em junho de 2005.

Em “O Grande”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, tradução de Heloisa Jahn, estão as fascinações constantes de Juan José Saer: o encadeamento de frases longas, a preocupação com a pontuação que estabelece velocidades e ritmos muito próprios, alguns dos personagens que aparecem em outros momentos da sua literatura, a repetição de um espaço narrativo (a Província de Santa Fé, objeto também de sua poesia), as recordações de uma infância remota que são também gatilhos para uma narrativa profundamente ancorada no presente. Apesar das conexões, inevitáveis, ao que parece, quando se tem a consciência de que à frente do escritor está a sua última obra, a última possibilidade de se fazer literatura, “O Grande” não precisa ser lido como totalização de um projeto literário, ou como a maior das tentativas do escritor argentino na ficção.

Willi Gutiérrez voltou a Rincón, pequena cidade às margens de Santa Fé, depois de trinta anos de ausência. Viveu na Europa e atravessou três décadas sem praticamente deixar rastros ou fazer com que notícias suas encontrassem o solo argentino. De volta ao povoado local, parece ansiar pelas coisas que tinha, ou que idealizava, ou que imagina ver, antes de partir. Voltou mais rico e enigmático do que partiu, dizem os que o conheceram de antes, com um sorriso dúbio que se instala nos lábios e parece não sair dali. De uma terça-feira de chuva até o dia seguinte ao churrasco dominical que Gutiérrez planeja em sua casa para receber os amigos de antes e os que agora se fazem presentes em sua vida, “O Grande” se desenvolve com enormes e múltiplas ramificações, tal como são muitos os afluentes do Rio Paraná, famoso cartão-postal da província e que se transporta com vida para a literatura de Saer.

Durante a semana, os personagens veem o tempo passar em longas conversas, muitas vezes acompanhadas de vinho tinto, em passeios pelas margens da água, em recordações do que foram num outro tempo e dos que já não estão, e nas reflexões filosóficas que Nula, quase jovem perto dos homens e mulheres que se reencontram com Gutiérrez, leva adiante e questiona sobre as modificações do tempo sobre o espaço (é a mesma a cidade visitada depois de uma longa viagem? é a mesma a praça com que um homem se reencontra após uma caminhada de pouco mais de vinte minutos pela paisagem de todos os dias?). Ao lado de Nula, aparecem seres como Soldi e Gabriela, que se esforçam por reconstruir a vida literária da região, em especial o período das vanguardas, para o que Gutiérrez é um dos principais interlocutores.

As descrições minuciosas de Juan José Saer, que por vezes se estendem por dezenas de páginas, nalguns momentos acendem luzes de uma cor quase mágica (como o instante em que Nula recorda as sensações do tempo em que visitava os campos do avô e divide as lembranças pela memória tátil, auditiva, olfativa, gustativa e visual) e noutras, como no penúltimo capítulo, justamente o aguardado churrasco que empreende Gutiérrez, imobiliza a narrativa e faz do não-movimento um motivo de esforço para que o leitor siga adiante. “O Grande” é um livro sobre o que o tempo transforma, sobre a inevitabilidade das alterações contínuas. Parte da alma do romance pode estar na epígrafe que recupera o poeta entrerriano Juan Laurindo Ortiz, que versa e se pergunta: “Voltava. — Esse que voltava era eu?”

Avellaneda

Posted in Sem categoria by iurimuller on 1 de maio de 2014

I.

Martín atravessava os campos abertos da Província de Buenos Aires a bordo do trem. Pela janela de um dos vagões da Linha General Roca, via, ao sul da Capital, um subúrbio em constante crescimento. Ainda existiam as chácaras, os pátios que ostentavam flores e goiabas, os longos terrenos abandonados ou à espera de construções. Mas naqueles anos, nos poucos quilômetros que separam Avellaneda de Buenos Aires, já era possível sentir a fumaça das fábricas, consequência imponente da década anterior. Na bagagem, ele levava pouco ou nada: alguma roupa, uma insignificante quantia em pesos e as chuteiras pretas de sempre.

Tinha pouco menos de vinte anos e, até ali, não contava com nenhuma experiência séria no futebol. Havia jogado desde a infância na sua província natal, aquela terra quente do norte, sem contratos ou esperanças. Na adolescência, vestiu camisetas de cores estranhas e descobriu cantos da cidade que jamais conheceria se não fosse o campeonato amador. Deixou gols em redes suburbanas e centrais, estalou traves em campos burgueses e miseráveis. Foi quando completou vinte anos que José, que dizia conhecer todos os homens importantes do norte argentino, alertou para as salvações do sul, para a grife do futebol de Buenos Aires, cidade que abrigaria os melhores quadros daquela época.

Algo Martín percebia pelas ondas do rádio. Que os locutores gritavam com maior entusiasmo os gols de Boca Juniors, River Plate e Independiente do que os de Racing e San Lorenzo, por exemplo. Que o Huracán parecia perder sempre, e que o Platense era um clube tão minúsculo quanto corajoso. Que, cada vez mais, os estádios enchiam, os clubes contratavam, o esporte crescia. Às vezes, jogava na frente de casa com o aparelho ligado em tardes de jornada esportiva. O som do rádio e a imaginação flutuante faziam com que as duas partidas – a sua, no barro, sem indicações de linhas na grama e com companheiros improvisados e a deles, transmitida para todo o país e já profissional – se mesclassem em horas oníricas.

No final de um desses domingos, José (parte do corpo encostado no balcão do bar, o copo de cerveja nunca vazio, a frase definitiva, jamais frouxa) comunicou a sério: vais ter que viajar, mostrar teu jogo em Buenos Aires, em Avellaneda, quem sabe em Lanús. Vais ter que descer a Buenos Aires para não cair pobre nesta terra de ninguém. Martín não se lembraria das palavras exatas de Don José, mas sim da cerimônia ao falar, da seriedade com que fez do boteco um recanto de silêncio formal que apenas ele poderia romper: hoje, na Argentina, há quem apenas jogue futebol e não precise de mais nada. No Racing, ninguém precisa mais trabalhar nas fábricas ou nos matadouros. Imagine você como deve ser no River, flaco.

Dias depois, sabe-se lá após quantas discussões familiares, embarcou num trem rumo a Buenos Aires. Disse aos amigos que voltaria, que era um teste para mostrar a alguns olheiros a naturalidade com que cabeceava sem fechar os olhos e o desarme exato que salvara tantos gols nos potreiros do interior. Em Buenos Aires, onde já havia estado, mas da qual não lembrava quase nada, ficou apenas algumas horas. Caminhou pelas ruas do centro e se imaginou vivendo num prédio muito alto, quem sabe na Avenida Corrientes, que tanto encantava a sua mãe; ou mesmo numa casinha austera da Balvanera, bairro em que poderia preservar os seus hábitos mais provincianos. O relógio preso ao pulso não permitiu que seguisse sonhando. Era preciso buscar a Estação de Constitución, de onde sairia o seu trem para Avellaneda.

 II.

Martín contemplava a Avenida Mitre, tão vazia aos domingos, através da vidraça de um café de esquina. Estava há meses em Avellaneda e já era conhecido nas ruas como o cumpridor quarto zagueiro do Independiente, ainda reserva, é certo, mas que havia entrado bem contra o Ferro Carril Oeste e o Chacarita Juniors, e falhado justamente no clássico que disputou em La Boca. Ganhava bem, treinava todos os dias ao lado de Ricardo Bochini e Daniel Saralegui, vivia perto do estádio e duas vezes por semana viajava a Buenos Aires para caminhadas sem rumo. Quase todos os meses telefonava para casa, mas antes de cada conversa encaminhava duas ou três cartas em que relatava a rotina da nova vida.

Eram tempos de felicidade e de estranhamento. Era jovem, vestia a camiseta de um dos maiores clubes do continente, poderia ser titular em quatro ou cinco times da primeira divisão que já tinham inclusive acenado com propostas. Mas sentia-se estranho por pensar que, de alguma maneira, chegara tarde demais a Buenos Aires. Nos jornais e nas ruas, discutia-se pela primeira vez mais sobre política do que sobre futebol. Tudo porque os militares haviam deposto Isabelita Perón da presidência em mais um golpe de Estado daquele século. No Independiente, alguns jogadores se mostravam preocupados e se comentava que o campeonato poderia parar.

Avellaneda, cidade de fábricas e de indústrias, de trabalhadores e de sindicatos, agora tinha em cada um dos seus bairros um enorme efetivo militar. Havia denúncias de que as prisões aumentaram, de que peronistas tiveram que deixar o emprego para trás e escapar para o interior com toda a família. Num final de manhã, pouco depois de tomar o último mate em casa, Martín passava pela Rua Libertador quando sentiu uma movimentação estranha no sobrado mais próximo. Ouviu uma porta bater e um grito ser sufocado. Pouco depois, dois jovens foram arrastados para um camburão por mais de dez oficiais, ainda antes do meio-dia, a poucas quantas do centro.

Nos treinos do Independiente, o assunto era tratado de forma evasiva. Havia quem desconhecesse por completo a situação política, sem saber o que havia ocorrido para que a viúva de Perón não frequentasse mais os salões da Casa Rosada. Outros sabiam tanto quanto Martín: que havia gente nervosa na Grande Buenos Aires, que alguns jornais publicavam reportagens pesadas, que os militares apareciam a todo instante nas rádios da capital e que alguns países europeus ameaçavam romper acordos políticos e comerciais com a Argentina. E havia Facundo, que desde que o dia do golpe estava ausente dos treinamentos e, quando apareceu, não falou com quase ninguém. O goleiro, diziam, poderia ser transferido para o futebol de Córdoba.

Martín conversou com Facundo no início da tarde de uma sexta-feira. Era abril, ventava, o sol parecia apenas cobrir o verde do gramado, sem agredir os olhos dos jogadores ou aquecer demais. Não eram exatamente amigos; compartilhavam, no entanto, de um dos espaços mais solidários possíveis: o banco de reservas de um estádio de futebol. O diálogo feito às pressas enquanto corriam ao redor do campo não serviu para grandes revelações. Facundo disse que poderia estar mesmo de saída, mas que isso nada tinha a ver com o campeonato do Independiente (apenas razoável, preenchido com boas atuações em casa e derrotas na condição de visitante, o empate no clássico com o Racing e o desastre em La Boca), mas que a despedida era motivada pelo país. “O país”, dizia Facundo, que parecia melancólico e misterioso demais para um goleiro reserva na Argentina.

III.

Facundo retirou todos os seus pertences do vestiário em poucos minutos. Agarrava as luvas e camisetas e as jogava com nítida pressa dentro de uma mala grande, na qual se deixavam observar outros objetos: documentos, livros, maços de dinheiro e mantas para o frio. Eram, mais do que nada, indícios de quem partiria para longe. Aquele boato do empréstimo para o Talleres de Córdoba finalmente deixava de fazer sentido. É certo que lá fazia mais frio do que na Província de Buenos Aires, mas não o suficiente para um jogador de futebol levar gorros ao estilo suíço. No rosto de Facundo, mais do que a pressa estava estampada a angústia, condição suficiente para que ninguém dirigisse a palavra a ele mesmo quando no vestiário descansavam cinco ou seis atletas.

Antes de atravessar a rua em direção a Avenida Mitre, Facundo avistou Martín, que caminhava na sua direção. Talvez o arqueiro esperasse mais um adeus singelo, sem abraços apertados e perguntas indiscretas. Martín, no entanto, permaneceu em frente ao colega e não precisou questionar nada. Via que algo estava fora do lugar naquela cena: ele deixando a sede com os pés ligeiros e uma mala nos ombros, o olhar entre amedrontado e nervoso, um par de desculpas na ponta da língua. Firmou os olhos nos seus. Pela primeira vez, Facundo foi sincero com alguém do clube.

Há semanas, disse, que tinha a casa rodeada por carros estranhos, que o telefone tocava e ninguém resmungava palavra alguma do outro lado da linha. Teve notícias de que um companheiro do partido (sim, militava com os peronistas da cidade há algum tempo) havia sido preso e possivelmente torturado; de modo que poderia delatar alguém, soltar endereços, nomes, números, senhas, mapas enquanto era violentado em algum galpão clandestino desta província que tinha se transformado em uma verdadeira zona de desgraças. Esparramou as frases como num pranto, e logo disse que precisava ir. Estava a caminho de Ezeiza, o povoado do aeroporto, e para tanto buscaria um trem em Constitución. No caminho, precisava passar em Buenos Aires para deixar uma carta e um bilhete num local seguro.

Desde então, Martín não teve mais notícias de Facundo. No outro dia, os jogadores do Independiente se reuniram no centro do gramado antes do treinamento. O técnico parecia ter muito a dizer, mas nada era relativo ao futebol. Antonio Villar, há duas décadas nas casamatas do futebol argentino, disse que nunca havia passado por nada parecido. Que esquecessem o tal Facundo, falou, que se concentrassem na próxima partida, na viagem a Santa Fé, nas armadilhas desta tabela meticulosamente organizada por estes torcedores do Boca Juniors que ocupam todas as cadeiras da federação. A orientação de Villar era quase uma súplica. Ele temia que o Exército, com ações cada vez mais disparatadas naquelas semanas de abril, pusesse os olhos até no campo do Independiente.

Os meses passaram e o clube não pôde superar o sexto lugar no campeonato da primeira divisão. Ao mesmo tempo em que se jogava futebol semana a semana, uma leva invisível de homens e mulheres deixava o país rumo a Estocolmo, a Porto Alegre e ao Rio de Janeiro por estradas noturnas ou nos aviões, sempre com disfarces desesperados, com documentos falsos e uma forte agonia no peito. Martín soube da história de alguns exilados antes de se tornar ele mesmo um deles, mesmo que de forma espontânea. Após uma boa pré-temporada em Mar del Plata, acertou com o novo empresário um passe para o futebol espanhol. Viveria perto de Barcelona, muito longe de Avellaneda.

 IV.

Martín viajou pela Espanha, visitou praias estranhas, encerrou a carreira como capitão do Osasuña e ganhou certo dinheiro. Conheceu o leste europeu e casou-se por lá com Marina. Ela tinha, como ele, os cabelos negros, o corpo moreno e os traços fortes cortando o rosto. Bem poderia ter nascido no norte argentino, mas era peruana – como ele, havia desembarcado na Europa por acaso. Martín assistiu à ditadura do outro lado do oceano. Na sua família, todos se mantiveram ilesos, com a exceção de um primo que, por borracho e brigão, desafiou um soldado num bar e acabou preso por dois meses. Os demais não se envolveram em nada e provavelmente sabiam tanto quanto ele, com a diferença de que estava a milhares de quilômetros da Argentina.

 

Não foi difícil encontrar notícias, de qualquer maneira. Os jornais franceses, distribuídos com pompa nas bancas de revista de todo o continente, noticiavam mais do que quaisquer outros a violação aos direitos humanos na América Latina. Desde Paris, opinavam que os militares argentinos eram mais sádicos do que os paraguaios, mais violentos do que os brasileiros, mais desafiadores do que os uruguaios e tão terríveis quanto os chilenos. De longe, pensou ele enquanto lia o Le Monde, é fácil comparar a tortura no terceiro mundo – no mesmo momento em que fechou o jornal e se viu tão distante da Argentina quanto o triste articulista.

Trinta anos depois, entrou num avião em Madrid e aterrissou no Aeroparque. Desceu em Buenos Aires após a primeira crise dos anos 2000, tempo em que duas a cada três lojas fecharam e no qual um a cada dois argentinos perdeu metade do que tinha no banco. Martín voltou numa época de reconstrução e reconciliação, tempo de levantar as casas, de salvar as fábricas, de reorganizar a política e desafiar a ditadura. A ditadura que, mesmo após ter entregado as armas, parecia ainda viva num canto da sala, visível e intocável, salvaguardada por uns quantos nostálgicos de má fé. Definitivamente, eram outros tempos. Avellaneda sofria com congestionamentos no trânsito, os trens eram precários, o Independiente jogava a segunda divisão e, em, Buenos Aires era inaugurada mais uma exposição sobre a resistência armada aos anos de chumbo.

As telas e os paineis tomavam conta de uma praça de Núñez, no norte da Capital. Era organizada por uma das tantas associações de familiares de vítimas da repressão que surgiram com a democracia. No caso desta, a narrativa era personificada. Cerca de vinte militantes, de diferentes organizações, partidos proscritos e seus braços armados, apareciam retratados numa foto em preto e branco e em poucas linhas biográficas. A distinção de outras honras semelhantes se dava por conta do enquadramento; havia se optado por relatar a trajetória de anônimos da resistência, e não dos mártires reconhecidos. Eram operários das fábricas, policiais rebeldes, estudantes universitários do interior. E, ao lado de um álamo, quase na última curva da praça, Martín pôde ver um rosto conhecido que havia ficado para trás durante as últimas três décadas. Ao lado da foto, leu:

“Facundo Saavedra, 24 anos, goleiro. Jogou no Club Atlético Independiente e no Club Almagro. Em cinco anos, entrou em campo cerca de trinta vezes pela primeira divisão. Militou no Partido Comunista e logo passou às fileiras da guerrilha peronista de Avellaneda, na qual atuou até 1977. Foi morto em plena Estação de Constitución, enquanto esperava o trem na plataforma destinada a Ezeiza. Seu destino deveria ser o exílio. Na foto ao lado, Facundo aparece entre Martín Guzmán (à esquerda, na época zagueiro do Club Atlético Independiente) e Juan Manuel Benítez (à direita, antigo meio-campista e também companheiro de equipe)”.