“Último domicilio conocido”, de Omar Prego Gadea (e breve passeio pelas livrarias montevideanas)
De Omar Prego Gadea havia lido apenas um conto, presente na antologia Relatos de Montevideo, da editora Cántaro. O conto se chama “Función nocturna” e, entre os que eram novos para mim na publicação, foi o que causou o mais interessante efeito: era, como indica quem sabe o título, um relato sombrio, de alusões e poucas referências sólidas, de um encontro que se dá e se perde nas ruas de Montevideo, com os vultos da ditadura à espreita e complicados os trajetos e deslocamentos. A noite se fecha, alguém se perde no caminho entre dois bares, os endereços não correspondem com as indicações prévias: o relato cresce e acentua a angústia.
Há poucos dias, de volta a Montevideo e ao trabalho de pesquisar livros usados nas livrarias da capital uruguaia, lembrei de Prego Gadea que, até então, havia se limitado, na minha leitura, àquele único texto. E recordei o autor no local mais indicado para que isso acontecesse, no sentido de encontrar novas referências e edições: estava na livraria Linardi y Risso, situada na rua Juan Carlos Gómez, quase na Plaza Matriz, já na Ciudad Vieja. Ali, na livraria que também funciona como editora e espaço de leitura, não só se encontrará o, creio, mais rico acervo de literatura uruguaia à venda na cidade como se aprenderá algo mais sobre os títulos, os autores, o que pode ser buscado e o que se esgotou, sobre a história e o pensamento construído no Uruguai.
Se é verdade que o próprio bairro mostra ao caminhante livrarias interessantíssimas (destaco a La Lupa, na rua Bacacay, a poucos metros do Teatro Solís, e a enorme Puro Verso da peatonal Sarandí) e em outras regiões da cidade também há fartura (como os sebos da rua Tristán Narvaja, casos de Babilonia e Rayuela), há algo distinto na Linardi y Risso – que pode ser, quem sabe, a presença na vitrine de primeiras edições de autores como Onetti, igualmente à venda, o tempo que se dá ao curioso que pretender esgotar com os olhos quase todas as estantes, a presença de uma variedade, no catálogo, que em nenhum momento se derrama no aleatório. Entre os livros de Prego Gadea presentes, comprei, por poucos pesos, o volume de contos Los dientes del viento (de 1969; ainda por ler) e a novela Último domicilio conocido, que aqui comento.
Publicada em 1990, a novela guarda semelhanças com o conto citado anteriormente: entre as questões temáticas, estão o exílio, elementos que se aproximam da narrativa policial, a incerteza, a alusão e a dúvida como chaves para se levar a narrativa adiante. Também está a cidade de Montevideo, aqui um espaço que oscila entre as passagens abertas, diurnas, que se mostram por inteiro ao leitor, e uma cidade novamente noturna, voltada sobre si mesma, que não termina de se apresentar de todo. O enredo se move entre dois crimes (um assassinato e um a assalto a banco) que, quando se aproximam, formam uma intrincada rede de possibilidades políticas (para se entender, ou tentar entender, o ocorrido, sempre em contato com as amargas recordações da ditadura militar e dos anos que a anunciavam) e literárias (já que a feitura da novela é marcada por artifícios que tocam o tempo e o estilo, numa prosa que nunca aceita a linearidade).
A epígrafe do livro, que reproduz uma passagem do francês Alain Robbe-Grillet, escritor vinculado ao nouveau roman, ajuda a compreender o intento do autor, que havia retornado do exílio francês ao Uruguai no final dos anos 1980: narrar desde distintos olhares, de diferentes ângulos e mesmo de múltiplos momentos, no tempo, uma pequena porção de acontecimentos, em repetições nunca exatas. Omar Prego Gadea, aqui, não se importa com a dúvida; quase se pode dizer que a deseja – escolha que confunde, inclusive, a intenção de certos capítulos. E o espaço por onde se movem os personagens (Carlos, Clara, Casal, o Macizo), esta Montevideo de passeios errantes e telefones anônimos que tocam, tem algo outra vez de labirinto sem saída, de um passado perdido de antemão.
Último domicilio conocido, de Omar Prego Gadea. Montevideo: Trilce, 1990.
Ciudad de todos los vientos
Esta é uma reportagem escrita há dois anos, que recupero agora. Em 2011, foi publicada na revista Fora de Pauta de Santa Maria.
Montevideo quince de noviembre
de mil novecientos cincuenta y cinco
Montevideo era verde en mi infancia
absolutamente verde y con tranvias
Dactilógrafo, Mario Benedetti
Entre as capitais do continente, Montevidéu pode parecer distinta, em um primeiro olhar, por certos fatores: é a capital mais ao sul da América, já que se localiza um pouco abaixo de Santiago do Chile e Buenos Aires; é banhada, em sua costa, por duas águas que se encontram e se misturam, a do Atlântico e a do Rio da Prata. Para o turista que por ali permanece poucos dias, Montevidéu é a cidade dos prédios antigos, do vento frio que sopra do Rio e, às vezes, a que se confunde com o próprio país. Aos olhos do morador, que cresceu enquanto crescia Montevideo, talvez seja uma cidade que destoe do que se pensa de uma capital latino-americana. Mas, como disse um dia o poeta e escritor argentino Jorge Luis Borges, a cor de uma cidade é mais uma invenção estrangeira, uma impressão dos que não vivem ali, do que algo pensado por seus habitantes. (more…)
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