Calle Soriano

Sant Adrià de Besòs

Posted in Sem categoria by iurimuller on 10 de março de 2014

 

Foi por uma indicação de um taxista, ainda no aeroporto de Barcelona, que chegou pela primeira vez a Sant Adrià de Besòs. Era uma noite de março, fazia frio, e pouca gente desembarcava no terminal por aquelas horas. Com uma mala bordô pendendo no braço direito, caminhou sem rumo por minutos, sem disfarçar o fato de que nunca antes estivera em terras catalãs. Antes de sair pelo portão principal de El Prat, decidiu perguntar em espanhol para um homem que, sentado e só, parecia esperar por questionamentos: o senhor saberia me indicar um hotel barato em Barcelona? Eu preciso ficar um tempo por aqui, não precisa ser muito no centro, senhor.

Minutos depois, estava rodando no carro amarelo e negro pelas autopistas, rumo ao arrabalde. De forma muito democrática, mais até do que um taxista está acostumado, ambos combinaram que a viagem seria para Sant Adrià de Besòs, pequena cidade que limita com a região leste de Barcelona. Com as mãos firmes no volante, como que para impedir a chegada do sono, o homem garantiu que ali os hoteis custariam pouco e o acesso aos bairros interessantes seria simples.

A corrida custou caro, tanto que tirou três ou quatro notas de euro da carteira, mas em nenhum instante ele duvidou da seriedade do taxista e do acerto na escolha. Desde a chegada numa Barcelona gelada e com poucos turistas, dormiu a imensa maioria das vezes em Sant Adrià, com exceção de noites que se estenderam para impensadas camas do bairro Gótico, resultado do feitiço da búlgara Anastasia. Mas ele ainda pode lembrar o taxista indicando com o dedo para fora do carro aí está Montjuïc, aí se pode ver uma parte do parque olímpico, à direita está o cemitério, mas agora não dá para enxergar bem, tu podes voltar durante o dia – e lá se vão cinco meses difíceis.

O mais hostil deles parece ser este agosto abafado em que os relógios de rua marcam 30º e o dinheiro começa a rarear para ele de modo preocupante. Antes, os percalços eram resolvidos (mentalmente, se não no sentido prático) desta maneira: pensava que estaria pior em Madrid, estaria pior em Porto Alegre, não há o que reclamar e é preciso insistir um pouco mais. Mas o que se viu depois foi uma série de inundações – o pessimismo chegava em ondas, a crise financeira e social cercava a todos e deixava como náufragos também os moradores provisórios, os que, como ele, provisoriamente não sabiam quando voltariam e de que maneira abandonariam Barcelona.

Duas semanas depois de se instalar no Hotel Sant Roc (duas estrelas, café da manhã incluído na diária, pequeno terraço com plantas confortável para a leitura), conseguiu um emprego de meio turno num café das proximidades, e já tinha em mente os primeiros artigos que escreveria para o jornal brasileiro que estava bancando o início da viagem. Além disso, o cotidiano em Sant Adrià o fascinava pelo tanto de inesperado que havia ali – mesas sempre postas nas ruas, poucos carros nas artérias secundárias, um comércio de bairro, imigrantes árabes (de tantos lugares) e latino-americanos. Estava a vinte e cinco minutos dos bairros mais movimentados de Barcelona, mas pela janela do quarto o que enxergava de mais grandioso era a autopista que levava os carros para Girona.

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O primeiro artigo que enviou para o Brasil (trezentos euros, cinco páginas em Times New Roman, fonte 12, espaçamento 1,15) foi escrito em dois dias e o satisfez. Basicamente, entrevistou imigrantes que pensavam em regressar ao país de origem com a chegada da crise na Europa e as melhores possibilidades que viam outra vez na América Latina. A maior parte deles tratava a permanência na Espanha como definitivamente inviável, e que esperavam prosperar assim que regressassem. Mostrou o texto para Anastasia, que disse ter ficado curiosa com as descrições de Lima e Guayaquil, cidades que ele tampouco conhecia. Os entrevistados entrariam num avião nos próximos meses, em fuga do desterro, enquanto ele continuava à espera de motivos para ficar por mais tempo.

Para escrever o segundo artigo teve de atravessar a cidade a bordo do metrô: da estação Artigues, no extremo leste, em direção à Cornellà, no oeste. São dezesseis estações e duas trocas de linha, em pouco mais de uma hora de deslocamento. Em Cornellà de Llobregat, assistiu ao enfrentamento futebolístico entre Espanyol, o clube azul e branco de Barcelona, e Real Sociedad, equipe das mesmas cores com sede em San Sebastián, no País Basco. Embora o pano de fundo do texto tenha sido mesmo o futebol, havia um claro interesse antropológico e político: a partida estava sendo disputada na Espanha, e de um lado uma torcida cantava em catalão, e do outro a parcialidade visitante respondia firme em basco.

Escreveu, portanto, sobre as muitas línguas que formavam aquela nação e as particularidades políticas que atravessam o futebol. O fato da torcida do Espanyol – menos separatista do que o rival Barcelona, é certo – estender uma bandeira da Espanha no seu estádio deixou tudo um pouco mais confuso. Ao retornar da partida, já no entardecer, repartiu o vagão do metrô com dezenas de bascos entristecidos com a derrota. Resolveu descer na estação da Sagrada Família e tomar uma cerveja na calçada, apesar de ali as bebidas custarem um pouco mais do que em Sant Adrià. Nos poucos instantes em que permaneceu sentado, viu um paquistanês vendendo flores, um argentino vendendo mapas, uma portuguesa vendendo a sua cerveja e turistas brasileiros que tiravam fotos de maneira desesperada, antes que as últimas luzes do céu se desgrudassem do contorno da igreja.

Já estava outra vez no metrô, cansado e com vontade de se atirar na cama para esquecer o perfume das rosas do Paquistão e os gols perdidos pelo ataque da Real Sociedad, quando, quase que por inércia, abriu os emails na internet do celular. Há dias em que nada de importante aparecia na caixa de entrada, mas ali estava uma notícia: o editor da publicação brasileira lembrava que o prazo para o segundo artigo se encerrava no dia seguinte, e já alertava que seria difícil enviar dinheiro para contribuições nos próximos meses. A revista passava por momentos complicados, avisava o editor, e os diretores pensavam inclusive em eliminar a edição impressa ou reduzir drasticamente a periodicidade. De qualquer maneira, deixou para se preocupar na manhã seguinte, pois o sono era mais poderoso do que qualquer mau presságio.

***

Anastasia, acho que não haverá mais remessas para os artigos, esta foi a última. E apenas com o dinheiro do café não consigo ficar por aqui muito mais tempo, falou, entre nervoso e aturdido.

Anastasia, há dez anos em Barcelona, desde os quinze, portanto, se virava muito melhor do que ele. Era fotógrafa de uma publicação independente, ofício que não rendia qualquer dinheiro, mas a aproximava de gente interessante; para compensar, trabalhava à noite num restaurante e nos finais de semana como recepcionista num hotel pós-moderno da Cidade Velha. Foi ela que insistiu para que não deixasse de escrever. Se aquela revista havia desistido, existiam outras. Barcelona era uma cidade cara e difícil, tão enlouquecedora que poucos jornalistas devem ter resistido por aqui, ela disse, de modo que os artigos podem ser enviados para outras cidades do Brasil, para outros países do continente.

Era a hora de fazer um esforço, quem sabe escrever sobre outros temas, quem sabe escrever ficção?, continuou Anastasia. Ele, entretanto, sabia bem que desde os anos 1980 as publicações não pagavam mais para estampar literatura nas suas páginas, a não ser que fosse o caso de um Mario Vargas Llosa (nos anos 1990), de um Ferreira Gullar (nos 2000) e de um Alan Pauls (nos dias de hoje). Mas entre atravessar de leste a oeste o mapa do metrô de Barcelona para assistir a jogos de futebol e se arriscar na literatura, preferia tentar a segunda alternativa. Ainda que não tivesse tantas ideias prévias, e sim umas ganas enormes de imitar o estilo de Julio Cortázar, escrito que tanto havia lido nos últimos tempos.

Poderia escrever, pensou, uma versão contemporânea do conto em que os moradores de uma casa se vêem acossados por forças misteriosas dentro da própria residência. Ambientado em Barcelona, a própria cidade acabaria por encurralar o narrador-personagem. Começar a carreira literária com um plágio disfarçado de homenagem não me parece promissor, disse a búlgara, que logo amenizou a crítica: mas esta reconstrução mostra que tens alguma criatividade. Escreves sobre o que tu vês ao caminhar pela cidade, os homens estranhos que chegam neste teu hotel. Deve haver alguma história boa por aí, sugeriu.

Desperto pela insônia e o dia vazio, enxergava pela janela os carros que deslizavam pela autopista, os dezenas de catalães que rumavam à Girona naquela noite de terça-feira, formando filas. Eram as únicas luzes que os olhos achavam no início da madrugada; o comércio de Sant Adrià, inteiramente diurno, já tinha suas portas fechadas e as lâmpadas desligadas; nos prédios próximos, todos eles baixos, poucos habitantes pareciam estar acordados. Só não sabia se havia mais vazio no plano que observava ou dentro daquele quarto de hotel – com livros lidos e relidos em cima da mesa, o dicionário ainda selvagem que explicava sem sucesso o catalão, cabides de casacos repetidos, garrafas secas, a planta que clamava por água em silêncio.

***

Como fazem os desorganizados que aspiram encontrar métodos, escreveu numa folha solta de caderno as regras da nova rotina. Às tardes, caminharia por Barcelona, à procura de histórias e de temas para escrever os primeiros relatos. À noite, escreveria o que pudesse, ao menos duas páginas a cada tentativa, porque assim esgotaria o esforço. E durante as manhãs, sempre para ele o mais sóbrio dos turnos, revisaria o que havia tentado fazer na noite anterior, colocando fora as páginas que, mais do que incertas, causassem também algum constrangimento.

Por horas, desbravou avenidas, vagões de metrô, ônibus suburbanos; alugou uma bicicleta, gastou dez euros em tíquetes, perdeu-se e decidiu por fim comprar um mapa. Era turista outra vez em Barcelona, talvez com maior intensidade do que quando chegara na Espanha. Em frente a um prédio decadente de La Barceloneta, viu que um jovem casal saía pela porta da frente com alguma pressa, deixando-a entreaberta. Num impulso, adentrou o edifício. Onde deveria estar o porteiro, enxergou apenas um espelho embaçado. Entrou no elevador e apertou o botão que o levaria ao décimo andar do prédio, o ponto mais alto também da quadra.

Não havia terraço, o corredor desembocava em quatro portas e só havia uma janela, quase em frente à escadaria de emergência. Já estava a observar pela abertura. A primeira visão foi da lateral do prédio ao lado, que mais parecia um imenso caixote impregnado pela oxidação e o tempo. Nas dezenas de janelas, tremulavam, com suas semelhanças, as roupas estendidas e as folhas das pequenas plantas de apartamento. Mesmo ao longe, viu alguns poucos homens e mulheres circulando pelas casas naquele momento da tarde: alguns quase nus, organizando as camisetas na área de serviço; dois homens que conversavam alegremente, com a aparência de estarem ébrios, debruçados numa grade; em cima duma cama alta, um casal fazia o amor como que para mostrar o seu gozo para toda Barcelona.

Estava outra vez na calçada, quase sem fôlego. Ficara por mais de vinte minutos observando a caixa de concreto, sempre híbrida entre o vivo e o morto, o movimento e o silêncio. Ele tinha histórias para escrever, ainda que estivessem até agora desconectadas, à espera de um fio, de uma lógica interna, dos componentes de ficção que modificassem a realidade que enxergou sem qualquer esforço pelo retângulo de vidro de La Barceloneta. Rascunhando os espaços em branco da contracapa do El Tiempo, esboçou as primeiras linhas do relato às margens do Mar Mediterrâneo, sentado na curta faixa de areia, pouco antes da noite se apoderar das ruas e ser atacada pelas luzes dos bares e das lâmpadas amarelas das calçadas.

Anastasia e tantos outros logo caminhariam por este mesmo asfalto.

***

Ela agarrou as duas pernas dele no ponto mais firme das coxas e o puxou para si, quase no limiar entre o desejo e a violência. O sol invadia o quarto e deixava à mostra as imperfeições de cada um; os primeiros pêlos grisalhos da barba e dos cabelos dele, mesmo antes de alcançar os trinta anos, a cicatriz estampada na perna que um acidente ocorrido numa cidade da província causou num passado já remoto; e, no caso dela, a flacidez algo apressada dos seios, a ruga que despontava nas proximidades das têmporas. Mas, mais do que os detalhes que a noite esconde, o sol ampliava a cena para todo o edifício, para os vizinhos, para o bairro burguês de La Barceloneta.

Transaram por quinze, no máximo vinte minutos. Esforçaram-se ao máximo para que houvesse intensidade e não pressa; vontade, e não sofreguidão. Pela janela, o barulho do vento e o ruído longínquo de uma máquina qualquer brindavam um ritmo impreciso ao sexo. Ao fim, deitaram-se em silêncio, contemplativos, sem se valer de frases vazias ou de carícias posteriores. A janela permanecia aberta, escancaradas as suas duas portinholas de madeira, mas a nudez que descansava nos lençóis era recebida com indiferença pelos moradores do edifício, às voltas eles também com seus sons e suas pausas.

No mesmo andar, mas no lado oposto do edifício, numa sacada com vista para a avenida, não parece haver nenhuma prova de que são quatro horas da tarde de um dia de semana. Encostados na mureta, um deles sem camisa, apesar do vento fresco, dois homens conversam em voz baixa.

– No mês que vem, eu volto a tentar trabalhar. Não me parece certo passar os dias em casa se há filas de desempregados por aí, com mais energia e disposição do que eu. Do que nós.

– Eu nunca prometi nada, nem para mim e nem para ti. Vou na cozinha e volto com o segundo vinho.

Dois andares abaixo, na habitação que permite ainda assim um amplo plano da cidade que se espalha ao longo das margens litorâneas, as cortinas estão fechadas e pouca luz consegue preencher o ambiente. Hoje ele beira os sessenta anos, e há dez repete os mesmos hábitos dentro de casa. Quando abre a porta de entrada, por exemplo, a primeira coisa a fazer não é pendurar o casaco no cabide, ou acender a luz da cozinha; ele vai até a sala (tateando nos móveis, se já estiver escuro) e aperta o botão da televisão. O aparelho ficará ligado até que saia outra vez, e dele sairão os únicos diálogos, as únicas vozes a habitar aquelas paredes (…)

Bem, o que quer que eu diga?, disse Anastasia ao entregar de volta a ele a folha impressa. Está bom, eu gostei. O texto começa de forma estranha, não se sabe bem para onde vai, o que pretende… é como o que fazemos nesta cidade há tanto tempo, não é? Eu achei a tua cara.

Março de 2014

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