Calle Soriano

Gorz (2)

Posted in Sem categoria by iurimuller on 21 de setembro de 2014

“É preciso, em primeiro lugar, perguntar-nos: de que crescimento temos necessidade? O que nos falta e o que o crescimento deveria trazer-nos? Mas essas perguntas jamais foram levantadas. Os economistas, os governos, os homens de negócios reclamam pelo crescimento em si, sem jamais definir sua finalidade. O conteúdo do crescimento não interessa aos que decidem. O que lhes interessa é o aumento do PIB, ou seja, o aumento da quantidade de dinheiro trocado, a quantidade de mercadorias compradas e vendidas no decurso de um ano, quaisquer que sejam essas mercadorias. Nada garante que o crescimento do PIB aumente a disponibilidade dos produtos de que a população necessita. De fato, esse crescimento responde, em primeiro lugar, a uma necessidade do capital, não às necessidades da população. Ele cria, muitas vezes, mais pobres e mais pobreza, ele, com frequência, traz rendimento a uma minoria em detrimento da maioria, ele deteriora a qualidade de vida e do meio ambiente, em vez de melhorá-la. Quais são as riquezas e os recursos que faltam com mais frequência à população? Uma alimentação sadia e equilibrada em primeiro lugar; água potável e de boa qualidade; ar puro, luz e espaço; um alojamento saudável e agradável. Mas, a evolução do PIB não mede nada disso. Tomemos um exemplo: uma aldeia faz um poço, e todo o mundo pode tirar a sua água dali. A água é um bem comum, e o poço a produz porque houve um trabalho comum. Ele é a maior fonte de riqueza da comunidade. Mas ele não aumenta o PIB, pois ele não dá lugar a trocas de dinheiro: nada é comprado nem vendido. Mas, se o poço é cavado e dele se apropria um empreendedor privado que exige de cada aldeão que pague a água que ele retira, o PIB aumentará encargos embutidos pelo proprietário.
Tomemos ainda o exemplo dos camponeses sem terra. Se forem distribuídas a cem mil famílias terras improdutivas nas quais eles produzem sua subsistência, o PIB não muda. Ele também não muda se essas famílias repartirem suas tarefas de interesse geral, trocando produtos e serviços numa base mutualista e cooperativa. Contrariamente, se cem proprietários expulsam cem mil famílias de suas terras e fazem desenvolver nessas terras culturas comerciais destinadas à exportação, o PIB aumenta no montante dessas exportações e dos salários miseráveis pagos aos agricultores.
O PIB não conhece e não mede as riquezas, a não ser que elas tenham a forma de mercadorias. Ele só reconhece como trabalho produtivo o trabalho vendido a uma empresa dele tira lucro, ou, dito de outra maneira, que pode revender com lucro o produto desse trabalho. Só é produtivo, do ponto de vista do capital, o trabalho que produz mais do que ele custa, o trabalho que produz um excedente – um sobrevalor – suscetível de aumentar o capital (…)”.

Trecho da entrevista concedida por André Gorz a Sonia Montaño, publicada originalmente nos Cadernos IHU Ideias (Unisinos, 2005) e posteriormente na reunião de ensaios intitulada “Ecológica” (Annablume, 2010).

Gorz (1)

Posted in Sem categoria by iurimuller on 21 de setembro de 2014

“De fato, a racionalidade econômica nunca pôde se exprimir em sua essência nas sociedades pré-capitalistas. Nestas, a racionalidade econômica sempre foi represada e entravada (…) por entendimentos entre produtores e entre mercadores para interditar a livre concorrência em mercados livres. Ela nunca pôde se impor aos produtores, pois estes eram senhores de seus meios de produção e consequentemente livres para determinar eles mesmos a intensidade, a duração e os horários de seu trabalho. O recuo da autoprodução e a expansão da produção para o mercado nada mudaram na situação: as corporações ou os grupos ditavam ao mercado os preços uniformes para cada qualidade definida por eles, e proibiam fortemente toda forma de concorrência. As relações entre produtores e mercadores eram necessariamente contratuais, e os mercadores, por si mesmos, aproveitavam-se dessa situação, pois se encontravam protegidos contra uma concorrência de mercado livre. A norma do suficiente – ganho suficiente para o artesão, lucro suficiente para o mercador – estava tão bem enraizada no modo de vida tradicional que era impossível obter dos trabalhadores um trabalho mais intenso ou prolongado prometendo-lhes ganhos mais elevados. Como escreve Max Weber, o trabalhador “não se perguntava: quanto posso ganhar por dia se fornecer o maior trabalho possível, mas apenas: quanto devo trabalhar para ganhar os dois marcos e cinquenta que recebo até hoje e que cobrem as minhas necessidades correntes”.
No primeiro livro de ‘O Capital’, Marx cita uma vasta literatura que atesta a extrema dificuldade que tiveram os donos das manufaturas e das primeiras “fábricas automáticas” para obter de sua mão de obra um trabalho regular, em tempo integral, dia após dia, semana após semana. Para forçá-los a isso, não era suficiente – como tinham feito os manufaturadores – retirar deles a propriedade dos meios de produção; era preciso igualmente, depois de ter arruinado o artesanato, reduzir a remuneração dos trabalhadores por unidade de produto a fim de obrigá-los a trabalhar mais para obter o suficiente; e era preciso, para isso, retirar-lhes o controle dos meios de produção para poder lhes impor uma organização e uma divisão do trabalho pelas quais a natureza, a quantidade e a intensidade do trabalho a fornecer lhes seriam ditadas como condições próprias da matéria.
A mecanização era, por excelência, o meio de chegar a esse resultado (…) O instrumento de trabalho torna-se assim inapropriável pelo trabalhador, e essa separação entre o trabalhador e o produto, assim como aquela entre o trabalhador e o próprio trabalho – que doravante existe dentro dele como a exigência muda, da parte da organização material, de tarefas quantificadas, predeterminadas e rigorosamente programadas -, essas separações demandam ser realizadas.
É somente sobre a base dessa tripla desapropriação que a produção pode se emancipar da arbitragem dos produtores diretos, ou seja, tornar-se independente da relação entre as necessidades e os desejos que eles sentem, o tamanho do esforço que estão dispostos a fornecer para satisfazê-las, a intensidade, a duração e a qualidade desse esforço.
É ainda essa tripla desapropriação que permitiu especializações funcionais cada vez mais estreitas; a acumulação e a combinação, num mesmo processo de produção, de uma massa de saberes técnico-científicos oriundos de disciplinas heterogêneas, incapazes de se comunicarem e de se coordenarem entre si, e cuja organização produtiva requeria um estado-maior e uma estrutura piramidal quase militar (…)”.

Fragmento do ensaio “A ecologia política entre a expertocracia e a autolimitação”, de André Gorz (1992). Publicado em “Ecológica” (Annablume, 2010), com tradução de Celso Azzan Jr.